A BOMBA EXPLODIU NO SUPREMO // EDUARDO OINEGUE
O GLOBO -
No dia 18 de maio de 1989, o deputado federal Plínio Martins (PMDB-MT), já falecido, apresentou à Câmara o Projeto de Lei 2.255, "instituindo normas procedimentais para processos perante o Superior Tribunal de Justiça" Lido no plenário, foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça, onde acabou aprovado por unanimidade. A Mesa Diretora da Câmara o colocou na pauta de votações. O texto foi novamente aprovado, desta vez em plenário, e enviado ao Senado Federal, que o confirmou. No dia 25 de maio de 1990, o projeto 2.255 se transformou na lei 8.038, sancionada pelo então presidente Fernando Collor de Mello. Nos 378 dias em que o projeto tramitou, nenhum parlamentar, de qualquer partido, nenhum jurista, de qualquer corrente, se manifestou de forma efetiva para afirmar de maneira clara, ou mesmo sugerir de forma indireta, que a nova peça integrante do ordenamento jurídico nacional escondia em seu conteúdo uma bomba-relógio. Na semana passada, essa bomba explodiu. Explodiu no colo dos onze ministros do Supremo tribunal Federal, chamados a se debruçar sobre mais um texto legal confuso.
Texto legal confuso. É disso que se trata. O que se pode dizer de uma lei que dá a cinco ministros a impressão de ter revogado o artigo do regimento do STF que autoriza a possibilidade de embargos infringentes em processos como o do mensalão? E que dá a outros cinco a impressão de não ter revogado coisa alguma? Esse era o quadro quando o ministro Celso de Mello iniciou seu voto, na quarta-feira da semana passada. Cinco interpretavam a lei de um jeito, cinco de outro. Ao aderir à corrente dos que entendem que a lei não revoga o regimento interno, e que os embargos são válidos, Celso de Mello desapontou os que queriam ver encerrado o julgamento e agradou os réus e advogados de defesa. Indiretamente, no entanto, o conjunto dos ministros do Supremo tribunal Federal, tanto os que votaram contra quanto os que votaram a favor dos embargos, deram ao Brasil um recado ao qual se deveria prestar atenção. O recado nada tem a ver com o julgamento em si, mas com dois problemas graves que afligem a sociedade brasileira.
O primeiro problema é que nos nos tornamos vítimas de legisladores que, mesmo quando têm o intuito de organizar o país, muitas vezes o desorganizam ainda que de forma involuntária. Seja porque fazem leis ruins e mal escritas, seja porque fazem muitas leis, seja porque fazem as duas coisas juntas. A conta que vai parar na sociedade é a seguinte: as pessoas costumeiramente não sabem que lei seguir, se a nova ou a velha, ou se a soma das duas nos trechos era que não se chocam. Acontece isso quando querem um empréstimo e escutam que "a lei manda" reunir isso e aquilo para depois descobrir que existem leis sobre o mesmo assunto que apontam noutra direção. Acontece quando se desentendem com o plano de saúde que não autoriza um exame ou procedimento médico "conforme a lei" ainda que haja outra lei segundo a qual a autorização deveria ser dada. Acontece no casamento, na separação, na contratação, na demissão, na aposentadoria. Acontece no mundo dos negócios. Essa instabilidade sobre o que pode e o que não pode no Brasil é um dos motivos para o país aparecer lá embaixo nas listas de competitividade. E onde a maior parte dessas discussões vai parar? Na Justiça.
Por vezes, os juízes se vêem obrigados a dar entendimentos diferentes para demandas iguais apenas porque, entre uma ação e outra, surgiu uma lei que estabelece uma nova realidade. Isso acontece da primeira à última instância, reforçando o ambiente de insegurança jurídica. O que vale hoje talvez não valha amanhã. Ao fim de toda lei nova, os legisladores se protegem e fingem contornar os conflitos escrevendo no último artigo que, com a publicação no Diário Oficial, "revogam-se as disposições em contrário. Sociedade e Poder Judiciário que se virem para identificar quais são as disposições em contrário que acabaram revogadas. A propósito: há uma lei ordenando que o novo texto legal diga claramente quais disposições em contrário serão revogadas. Ela é raramente cumprida. Quando tais discussões batem no Supremo tribunal Federal, os ministros acabam obrigados a atuar como revisores do trabalho do Legislativo, o que gera um desgaste indevido na relação entre os poderes.
O excesso de leis - e de leis ruins - é um dos problemas que emergem desta etapa do julgamento. O outro, também sem conexão direta com o conteúdo das sentenças, é a incapacidade que o país tem de discutir problemas quando constituem apenas uma teoria. A lei 8.038 era um problema teórico, pois seu conteúdo apenas poderia provocar um ruído, como provocou, ainda que esse ruído não fosse certo. Seu teor não virou tema de debate sério, a exemplo do que acontece com outros grandes problemas que, aceitos como um desafio teórico, têm tudo para explodir no futuro. Para citar apenas um: o caixa da Previdência Pública. As projeções não são boas e os mais cuidadosos dão como certo que a conta não vai fechar em breve. Os políticos, governistas e oposicionistas, se debruçam com seriedade sobre o assunto? Não. Parecem torcer para que o tempo se encarregue da solução, como se fosse possível.
Na votação da semana passada, o fato de jamais termos nos dedicado a discutir em tese os efeitos da lei 8.038 sobre o Regimento Interno do Supremo tribunal Federal - um assunto indiscutivelmente chato - colocou o país diante do mesmo assunto chato, só que na prática. E mais: colocou os ministros do Supremo tribunal Federal numa situação para lá de injusta. Quem reconhecesse a lei de Plínio Martins, formava entre os homens bons, que defendem a punição dos homens maus. E quem não reconhecesse a lei, como fez o ministro Celso de Mello, cerrava fileira ao lado dos malvados, contrários aos interesses da sociedade. E não se trata disso.
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