Gravidade do mensalão deriva não apenas do montante desviado, mas principalmente pelo golpe contra a democracia que se pretendeu com a compra de apoio parlamentar
Por que o caso do mensalão foi tão emblemático na história republicana brasileira? O novo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, deu alguns sinais preocupantes em sua entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, publicada no último sábado. Perguntado pelo repórter se considerava o mensalão o maior escândalo da história do país, Janot respondeu: “O que é maior? Receber um volume de dinheiro de uma vez só ou fazer uma sangria de dinheiro da saúde, por exemplo. São igualmente graves, mas eu não consigo quantificar isso. Não sei o que é pior. Não sei se este é o maior caso de corrupção, não. Toda corrupção é ruim”. Quando o jornalista emendou citando o envolvimento da cúpula de um governo, o procurador-geral continuou: “E a [corrupção] difusa? Envolve também muita gente. Dinheiro que sai na corrupção falta para o atendimento básico de saúde, educação e segurança pública. Toda corrupção é ruim”.
A resposta de Janot traz, implícita, a noção de que o que faz um escândalo “maior” ou “menor” é apenas o volume de recursos desviados – raciocínio que também foi usado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, em sua primeira participação no julgamento, em 14 de agosto. “É no mínimo questionável a afirmação de se tratar do maior escândalo político da história do país”, disse Barroso na ocasião. As estimativas de dinheiro movimentado pelos mensaleiros giram em torno dos R$ 150 milhões, e o ministro citou outros casos, como o dos “anões do Orçamento”, do TRT de São Paulo, e o do Banestado, com “remessa fraudulenta para o exterior de mais de R$ 2 bilhões”, nas palavras de Barroso. Nem precisaria ir tão longe no tempo: o atual escândalo envolvendo o Ministério do Trabalho já teria atingido a cifra de R$ 400 milhões.
Mas tratar o mensalão como simples caso de “desvio de recursos”, ainda que tenha movimentado muito dinheiro e tenha tido a participação de figurões do governo Lula, é subestimar a gravidade do ocorrido. O escândalo foi muito além do assalto aos cofres: foi um atentado à própria democracia. Ao pretender comprar a lealdade de partidos políticos, os mentores do mensalão atentaram contra a independência entre os poderes, uma das bases do Estado Democrático de Direito. Quem melhor pode explicar isso são alguns dos próprios ministros do STF, que durante o julgamento deixaram clara a gravidade do mensalão. “Com a velha, matreira e renitente inspiração patrimonialista, um projeto de poder foi arquitetado. Não de governo, porque projeto de governo é lícito, mas um projeto de poder que vai muito além de um quadriênio quadruplicado, muito mais de continuidade administrativa. É continuísmo governamental. Golpe, portanto, nesse conteúdo da democracia, que é o republicanismo, que postula renovação dos quadros de dirigentes”, disse Carlos Ayres Britto ao condenar o núcleo político do mensalão por corrupção ativa. Na mesma ocasião, Celso de Mello, lembrando que “os atos praticados por estes réus em particular [José Dirceu e José Genoino] descaracterizaram por completo o modelo de democracia congressual”, ainda disse que “a conquista de adesões mediante, por exemplo, migrações partidárias obtidas com estímulo de práticas criminosas representa atentado aos valores estruturantes do Estado Democrático de Direito”. Quando magistrados da mais alta corte do país usam termos como “golpe” e “atentado”, sabe-se que não estamos diante de apenas mais um caso de desvio de dinheiro.
E é igualmente preocupante perceber que o desprezo à democracia representado pelo mensalão não representa um “ponto fora da curva”. Basta ver como a cúpula petista trata outras liberdades democráticas. O presidente da legenda, Rui Falcão, é notório por suas declarações de hostilidade à imprensa independente. E blogs ligados ao petismo não hesitaram em disparar ofensas racistas contra Joaquim Barbosa, presidente do STF e relator do processo do mensalão. Para combater os “inimigos” do partido, vale até recorrer a expedientes odiosos, mostrando que, para a direção do partido, os fins realmente justificam os meios: a preservação do poder legitima tudo, de corrupção a racismo.
Janot tem razão quando diz que “toda corrupção é ruim”. Mas não se pode adotar uma ética pautada pelo “preto ou branco”, que trata todas as transgressões como igualmente más. Há pequenas e grandes corrupções, e é verdade que a tolerância com aquelas leva a estas. Mas dentro de um mesmo tipo de delito há casos mais e menos graves. O mensalão, dentro deste contexto, precisa, sim, ser tratado como algo extremamente grave, principalmente por seus objetivos antidemocráticos. Avaliar esse escândalo apenas do ponto de vista do montante desviado é fechar os olhos ao golpe que se tentou levar a cabo no país.
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