por Josê Nêumanne
No artigo Todos juntos pela impunidade,
publicado na semana passada, comentei como a blindagem da Polícia
Federal (PF), sob a égide do criminalista Márcio Thomaz Bastos, foi
rompida por dois acidentes de percurso. Roberto Jefferson, furioso com a
partilha da propina, pôs a boca no trombone, denunciando a compra de
votos, e Joaquim Barbosa, o estranho no ninho, pegou o touro à unha e o
levou até o fim.
Recentemente, foi publicada entrevista de Paulo Lacerda, diretor da PF
dita “republicana” de Márcio Thomaz Bastos, que foi advogado de Lula na
Justiça Militar à época das greves dos metalúrgicos e, depois, ministro
da Justiça no primeiro mandato presidencial do petista. Segundo ele, a
Polícia Federal (PF) fazia vista grossa à malandragem dos políticos que
obedeciam cegamente aos poderosos e não conseguia desvencilhar-se de
ingerências politiqueiras. A narrativa de “PF republicana” durou pouco e
foi para o saco na Operação Xeque-Mate, que pegou Vavá, irmão de Lula. A
PF “republicana”, que o causídico Bastos regia, só investigava inimigos
dos donos do poder. Seu modelo era a famigerada Delegacia Especial de
Segurança Política e Social (DESPS), versão federal dos Dops estaduais
no Estado Novo de Getúlio Vargas e que centralizou o aparato policial
para perseguir, processar e levar à prisão adversários do regime.
Quando o PT, Lula e Márcio Thomaz Bastos ascenderam ao poder, fizeram um
remanejamento de quadros na PF. E a deusa da Justiça, Têmis, inspirou
os ocupantes de postos-chave, em que usavam seus olhos vendados a favor
do regime e contra a liberdade de quem ousasse desafiá-lo. Por isso os
órgãos de fiscalização do Estado de Direito, descentralizado por
definição – a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o Tribunal de Contas da União
(TCU), a Superintendência de Previdência Suplementar (Previc/fundos de
pensão), o Banco Central, o Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf) e a PF –, não ouviram o tropel nem viram a manada de
elefantes passando à vista por 13 anos e meio a fio: da posse de Lula
ao impeachment de seu poste, Dilma.
Só a vista grossa da deusa Têmis pode justificar como a maior corrupção
da História chegou ao ponto a que chegou sem ser percebida.
A Lava Jato foi um acidente de percurso e decorreu do tratamento dado a
Marcos Valério, que provocou a deserção de mercenários. No mensalão,
Lula, o comandante em chefe, nem sequer foi arrolado, sob a proteção de
seus lugares-tenentes no Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo
Lewandowski (revisor) e Dias Toffoli e com a complacência do relator (e
depois presidente da mais alta Corte) Joaquim Barbosa. Nesse ambiente,
Luiz Gushiken, personagem importante no escândalo nunca desvendado da
guerra das teles gigantes, foi excluído de investigação, processo e
pena, chegando a ser inocentado e elevado ao panteão dos heróis
nacionais num discurso laudatório fora de propósito de Lewandowski, que
substituiria Barbosa na presidência do colegiado. Mesmo citado como
chefe da quadrilha, José Dirceu só ficou dois anos na prisão, sendo um
em prisão domiciliar. Já o publicitário Marcos Valério, que obedecia às
ordens de Dirceu, foi condenado a 40 anos e a bailarina Kátia Rabello,
dona do Banco Rural, usado na operação, mas na qual ela nunca teve noção
do que acontecia, a 16. Os mercenários perceberam que o bote
salva-vidas do PT fora inspirado no Titanic:
nele só embarcaram os passageiros da primeira classe. O resto foi
deixado para servir de pasto aos tubarões. Mas a trava da caixa de
Pandora só foi quebrada com Márcio Thomaz Bastos fora da Esplanada dos
Ministérios. E a mensagem ao Garcia chegou à “mercenariocracia”. Ao
primeiro risco de afundar, os mercenários, já sabendo que não teriam
lugar no bote do PT, partiram para agarrar o que flutuava: a delação
premiada. O que lhes restou foi o instituto usado nos Estados Unidos e
na Operação Mãos Limpas, da Itália, para perfurar a blindagem dos
poderosos chefões da Máfia, originária da Sicília, que se tornou rica e
influente agindo no porto de Nova York e nos bares de Chicago. Não é à
toa que tal expediente é o inimigo número um de advogados grã-finos que
representam a fina-flor da bandidagem nacional, em particular a turma da
empreita, distribuidora de propinas nas frestas da legislação que
regula as relações entre contratados e contratadores de obras e serviços
públicos desde os tempos da caprichosa Xica da Silva.
O esforço atual é orquestrado para fechar de novo a caixa de Pandora e
levar a situação ao estágio anterior, quando havia uma proteção velada
das instituições e do Estado ao governo e o entendimento de que dinheiro
ilegal usado em eleições é um mal inevitável, a que só se recorre para o
bem geral. No nome desse jogo o pano de frente é a compra de votos.
O PT transformou o Congresso em mercado persa. Nele tudo é comprado:
apoio, votos, leis, decretos-lei, exonerações fiscais, etc. O que antes
já se fazia por baixo do pano, como no sucesso junino de Antônio Barros e
Cecéu, à época da compra de apoio de bancadas no Congresso, passou a
ser explícito. Nas investigações de operações como Lava Jato, Cadeia
Velha, Zelotes e outras se desvendaram práticas antigas, como a de
empreiteiros, mas não só eles, que financiavam campanhas políticas
redigirem leis que os beneficiam. Nesse sistema, que era secreto e se
tornou explícito, a contratação de obras e serviços, concessões e outras
formas de negociação do Estado com fornecedores privados passaram a ser
moldadas ao interesse de quem fosse premiado com contratos
superfaturados e a remunerar os donos das chaves dos cofres da viúva em
redes de lavagem de dinheiro no exterior, que receberam a denominação de
“propinoduto”, um neologismo que não admite eufemismo. Parte dos
recursos arrecadados era, então, empregada pela elite dirigente dos três
Poderes da República privatizada para comprar votos do andar de baixo,
em que vivem em condições precárias os mais vulneráveis socialmente. Na
prática, o Partido dos Trabalhadores (!!!) fez o que sempre condenou
nos adversários empresários, latifundiários e que tais: “cafetinou” o
Congresso para prostituir o eleitorado.
O trabalho eficiente de uma geração jovem e preparada de policiais,
procuradores e juízes federais resultou na devassa dos escândalos do
mensalão e do petrolão, que desvendaram a prostituição da política e a
fraude eleiçoeira que sabota a democracia. O mensalão foi absorvido
pelo establishment:
os petistas e seus aliados foram indultados por Dilma Rousseff e
perdoados pelo STF. José Dirceu e Pedro Corrêa só não tiveram o mesmo
prêmio porque foram pilhados pela Lava Jato delinquindo em plena cela. O
primeiro, contudo, mesmo condenado a 30 anos e meio de cadeia, com a
benemerência da Segunda Turma do STF, sob a égide dos mesmos de sempre,
Lewandowski, Toffoli e agora Gilmar, passou férias articulando a
sobrevivência do PT no Sul da Bahia, sob a égide da Comissão Executiva
do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), ao sol de Itabuna e banhando-se
no Atlântico em Ilhéus, no gozo de plena liberdade. Como se fora um
sucedâneo contemporâneo do seu Nacib de Jorge Amado.
Enquanto isso, seus companheiros de armas da guerrilha de extrema
esquerda e de campanhas eleitorais petistas articulavam com condenados e
suspeitos da Lava Jato o sepultamento das operações eficientes de
Polícia, Ministério Público e Justiça Federal, na garantia da reeleição
dos de sempre para o Congresso. E no apoio a presidenciáveis citados em
processos ou aliados na guerra contra a faxina que o povo exigiu nas
ruas em 2013. No debate da Bandeirantes em 9 de agosto nenhum dos
presentes com chances se referiu à rapina dos cofres públicos promovida
por PT, aliados e até oposicionistas domados do PSDB. O tucano Alckmin
uniu-se aos apenados no mensalão Roberto Jefferson, Paulinho da Força e
Valdemar Costa Neto. Os sermões de irmã Marina nem de longe se referiram
aos “malfeitos” do ex-chefe Lula, político preso em Curitiba, excluído
da disputa por ser inelegível pela Lei da Ficha Limpa. Nem Álvaro Dias,
insistindo em nomear Sergio Moro ministro da Justiça, que afastaria do
combate à corrupção seu agente mais notório, se dignou a fazer uma
referência que fosse ao que provocou a fama do herói do povo. Todos de
olho nos votos do único que, por exigência da lei, não mentiu no debate:
o ausente Lula.
Jornalista, poeta e escritor
O Estado de São Paulo
extraídaderota2014blogspot
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