por Roberto Pompeu de Toledo veja
Na democracia ateniense a maioria dos cargos de governo era preenchida
por sorteio. Escreveu Aristóteles: “O sufrágio por sorteio pertence à
natureza da democracia; por eleição, à aristocracia”. Cidades-Estado
italianas do tempo do Renascimento, como Florença e Veneza, também
adotavam o sorteio. A superioridade desse método sobre o eleitoral, na
construção da democracia, seria reiterada, mais de vinte séculos depois
de Aristóteles, por outro luminar de todos os tempos da ciência
política, o francês Montesquieu. “O sorteio é um modo de eleger que não
prejudica ninguém e que permite a qualquer cidadão ter a esperança de um
dia servir à pátria”, escreveu o autor de O Espírito das Leis.Este
texto está começando com alta erudição, mas ao pôr os pés no chão o
leitor será contemplado com um mimo de inestimável valor: um modo de
livrar o Brasil do senador Romero Jucá.
Contra as Eleições é
um livro do belga David van Reybrouck publicado no Brasil no ano
passado (editora Âyiné). O autor percorre o panorama mundial de
desalento com a política e apresenta a volta ao sorteio como sugestão de
solução. Para nós, brasileiros, não se trata de método estranho à
experiência histórica: no período colonial era assim que se preenchiam
os postos nas câmaras municipais. E não se diga que funcionou mal;
característica frequentemente esquecida da história nacional é que as
câmaras propiciaram às vilas e cidades, não obstante o domínio
português, um ininterrupto período de autogoverno. Em Atenas, tirante as
mulheres, os escravos e os estrangeiros, todos estavam aptos a
participar da política. Entre eles, sorteavam-se os membros da
Assembleia dos Quinhentos, o órgão central do aparelho governamental,
para mandato de apenas um ano, e direito a apenas uma reeleição, não
consecutiva.
À sensibilidade contemporânea parece estranho enaltecer o sorteio em
detrimento da eleição e, mais ainda, colocar em polos opostos eleição e
democracia. O sorteio é no entanto aceito em diversos países para compor
as bancadas de jurados nos tribunais e pelos institutos de pesquisa
para auscultar a opinião pública. Junto com a rotatividade, que era
outra característica do sistema ateniense, permite a participação na
política de número muito maior de cidadãos do que o sistema eleitoral.
“A função do ‘político profissional’, que parece completamente normal
nos dias de hoje, para um ateniense seria uma coisa estranha, absurda”,
escreve Reybrouck. E novamente recorre a Aristóteles: “O princípio
fundamental de um regime democrático é a liberdade” (e) “uma marca
primordial da liberdade é a de, ao mesmo tempo, governar e ser
governado”.
Como transportar um sistema praticado em pequenas comunidades, como as
cidades gregas ou as italianas do Renascimento, para os Estados maiores
dos dias de hoje? Reybrouck cita autores que vêm se debruçando sobre a
questão (ele não é o único) e, principalmente, casos que vêm ocorrendo
mundo afora. Um deles foi a “convenção constitucional” instituída na
Irlanda em 2013 por um instituto de pesquisa. Um grupo de 66 pessoas,
sorteadas por critério de idade, gênero e local de domicílio, foi
incumbido de discutir certos temas polêmicos, entre os quais o casamento
de pessoas do mesmo sexo. Durante meses o grupo ouviu especialistas e
recebeu mensagens de milhares de cidadãos. Era a “democracia
deliberativa”, como a chama Reybrouck, em ação. Suas deliberações foram
levadas ao Parlamento e, em seguida, a um referendo popular, com o
resultado de, num país de forte influência católica, o casamento gay ter
sido aprovado. Um órgão similar, trabalhando com independência, e sem
as preocupações de eleição e reeleição dos políticos profissionais, quem
sabe ajudasse a desatar no Brasil nós como a reforma política.
Reybrouck cita ainda casos no Canadá, na Islândia e no Texas, mas todos,
como o da Irlanda, voltados para questões pontuais. Sua aposta maior é
numa casa legislativa, pelo menos uma, em nossos modernos Estados
nacionais, preenchida por sorteio. Em países como o Brasil, com duas
câmaras — uma de deputados, a outra de senadores —, uma seria composta
de membros sorteados, e a outra de eleitos. Acrescente-se que, como em
Atenas, o mandato dos sorteados seria curto, e obrigatória a alta
rotação entre eles, e com isso chegamos à realização do sonho anunciado
no primeiro parágrafo. Já imaginaram, leitor e leitora, o alívio cívico
de contar com casa legislativa sem um Romero Jucá?
(O colunista agradece a Matinas Suzuki por lhe ter chamado a atenção para o livro de Reybrouck.)
extraídaderota2014blogspot
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