Perdão, Jéssica
Você foi ao forró para festejar o novo emprego. Aí tudo parou. O carro te pegou pelas costas e o motorista está solto
RUTH DE AQUINO
Você não passava de uma jovem mulher comum. Uma beleza mestiça bem
brasileira, com olhos amendoados pintados por delineador, cabelos pretos
escorridos. Tinha 22 anos e uma filhinha de 4 anos. Morava no Piqueri,
Zona Norte de São Paulo.
Jéssica, você estava feliz. No amor, as coisas andavam bem. Tinha marcado para o fim de 2014 o casamento com o namorado dois anos mais novo, Geyvyson, um nome cheio de ipsilones. Na vida profissional, depois de seis meses sem trabalho, você tinha passado nas entrevistas na última terça-feira, dia 19, e estava animada para começar no novo emprego de atendente de telemarketing, na quinta-feira, dia 21.
Havia um feriado no meio da semana, que bom. Jéssica, você escolhera um programa comum e bem brasileiro para comemorar o emprego. Um show de sertanejo e forró. Pegaria o ônibus numa avenida movimentada, Edgar Facó, em direção ao Centro de Tradições Nordestinas, no bairro do Limão. O cantor era Gusttavo Lima, assim mesmo, com dois ‘t’s, e as bandas eram Garota Safada e Forró Balancear.
Você tinha saído com o namorado e dois casais de amigos. O relógio marcava aproximadamente meia-noite. Foi aí que tudo parou. O semáforo estava vermelho para carros. Você acreditou que, pela faixa de pedestres, chegaria ao outro lado da avenida. Um carro já estava parado no sinal. Você começou a atravessar. Conseguiu evitar um primeiro carro em alta velocidade, num pulo. Foi atropelada pelo segundo, que vinha, segundo a polícia, a 120 quilômetros por hora, o dobro da velocidade máxima permitida no local, de 60 quilômetros por hora. Seria um pega, um racha entre dois carros assassinos?
O Fiat Stilo amarelo pegou você, Jéssica, pelas costas. Com o impacto, seu corpo atravessou o para-brisa e ficou preso ao carro, que ainda percorreu 200 metros até parar em cima da Ponte do Piqueri. Jéssica Bueno Rodrigues da Silva – Silva como o ex-presidente Lula e tantos de nós –, você morreu na hora com a violência do choque. Suas pernas ficaram encaixadas no teto solar do carro, uma imagem de horror. O motorista e seus dois amigos fugiram sem sequer pensar em socorro. Disseram ter sentido medo de linchamento.
O motorista, o pedreiro autônomo Vagner Fraga Ferreira, de 28 anos, não poderia estar na direção de um veículo. Sua carteira fora cassada por acúmulo de infrações e multas, havia alguns meses. Ele já fora apanhado nessa situação e não poderia mais dirigir até maio de 2015. Algumas de suas infrações: manobra perigosa, arrancada brusca; transitar em calçada com carro; lacre, chassi, selo ou placa violada ou falsificada; excesso de velocidade. Tudo isso é detalhe no Brasil, até o cara matar alguém. Tem um monte de Vagner solto por aí.
Ele continua solto, por ser réu primário. Apresentou-se à delegacia no dia seguinte e saiu livre, no carro de seu advogado. Foi indiciado por suspeita de homicídio com dolo eventual. Isso significa homicídio intencional, quando se conhece o risco de provocar a morte de alguém. Vagner alegou ter sido fechado por um carro. Disse que o sinal estava verde. Os depoimentos das testemunhas o desmentem. O delegado busca imagens de câmeras para chegar a uma versão final. Nunca saberemos se Vagner estava embriagado.
Jéssica, você foi enterrada no feriado mesmo, à tarde, no Cemitério Vila Nova Cachoeirinha. Seu noivo chorava. Ninguém sabia como dizer a sua filha que você saiu para o forró, mas não voltaria nunca mais. Nenhum de seus parentes acredita na Justiça. Jéssica, você não era rica nem famosa, nem filha de celebridade. Sua mãe, Solange, disse não ter esperança de que Vagner fique preso: “Ele se apresentará com um bom advogado. Vamos esperar ele matar outra pessoa, quem sabe aí ele pode ser preso”. Sua prima, Rose, afirmou: “Neste país, não existe o quê? Justiça. Ele (motorista) fugiu do flagrante e não vai acontecer nada, absolutamente nada, nada. É o país da gente”.
No “país da gente”, ninguém sairá nas ruas em protesto contra sua morte nem erguerá o punho cerrado contra seu atropelamento bárbaro. Você virou um número, entre os 45 mil mortos por ano em crimes de trânsito no Brasil. Desse total, 44% morrem atropelados, como você, Jéssica. Quase 20 mil. São dados oficiais e escandalosos do Portal do Trânsito Brasileiro.
Vários pedestres assumem riscos ao atravessar fora da faixa. Em países civilizados, pedestres não são exterminados como moscas. Países civilizados jamais deixariam em liberdade um atropelador como Vagner, com sua biografia pregressa de infrator compulsivo. As causas principais de atropelamento com morte são bem conhecidas: velocidade não compatível com a segurança, falta de atenção, desobediência à sinalização, uso de drogas e bebidas.
Perdão, Jéssica, mas, no “país da gente”, sua história não dá manchete.
Jéssica, você estava feliz. No amor, as coisas andavam bem. Tinha marcado para o fim de 2014 o casamento com o namorado dois anos mais novo, Geyvyson, um nome cheio de ipsilones. Na vida profissional, depois de seis meses sem trabalho, você tinha passado nas entrevistas na última terça-feira, dia 19, e estava animada para começar no novo emprego de atendente de telemarketing, na quinta-feira, dia 21.
Havia um feriado no meio da semana, que bom. Jéssica, você escolhera um programa comum e bem brasileiro para comemorar o emprego. Um show de sertanejo e forró. Pegaria o ônibus numa avenida movimentada, Edgar Facó, em direção ao Centro de Tradições Nordestinas, no bairro do Limão. O cantor era Gusttavo Lima, assim mesmo, com dois ‘t’s, e as bandas eram Garota Safada e Forró Balancear.
Você tinha saído com o namorado e dois casais de amigos. O relógio marcava aproximadamente meia-noite. Foi aí que tudo parou. O semáforo estava vermelho para carros. Você acreditou que, pela faixa de pedestres, chegaria ao outro lado da avenida. Um carro já estava parado no sinal. Você começou a atravessar. Conseguiu evitar um primeiro carro em alta velocidade, num pulo. Foi atropelada pelo segundo, que vinha, segundo a polícia, a 120 quilômetros por hora, o dobro da velocidade máxima permitida no local, de 60 quilômetros por hora. Seria um pega, um racha entre dois carros assassinos?
O Fiat Stilo amarelo pegou você, Jéssica, pelas costas. Com o impacto, seu corpo atravessou o para-brisa e ficou preso ao carro, que ainda percorreu 200 metros até parar em cima da Ponte do Piqueri. Jéssica Bueno Rodrigues da Silva – Silva como o ex-presidente Lula e tantos de nós –, você morreu na hora com a violência do choque. Suas pernas ficaram encaixadas no teto solar do carro, uma imagem de horror. O motorista e seus dois amigos fugiram sem sequer pensar em socorro. Disseram ter sentido medo de linchamento.
O motorista, o pedreiro autônomo Vagner Fraga Ferreira, de 28 anos, não poderia estar na direção de um veículo. Sua carteira fora cassada por acúmulo de infrações e multas, havia alguns meses. Ele já fora apanhado nessa situação e não poderia mais dirigir até maio de 2015. Algumas de suas infrações: manobra perigosa, arrancada brusca; transitar em calçada com carro; lacre, chassi, selo ou placa violada ou falsificada; excesso de velocidade. Tudo isso é detalhe no Brasil, até o cara matar alguém. Tem um monte de Vagner solto por aí.
Ele continua solto, por ser réu primário. Apresentou-se à delegacia no dia seguinte e saiu livre, no carro de seu advogado. Foi indiciado por suspeita de homicídio com dolo eventual. Isso significa homicídio intencional, quando se conhece o risco de provocar a morte de alguém. Vagner alegou ter sido fechado por um carro. Disse que o sinal estava verde. Os depoimentos das testemunhas o desmentem. O delegado busca imagens de câmeras para chegar a uma versão final. Nunca saberemos se Vagner estava embriagado.
Jéssica, você foi enterrada no feriado mesmo, à tarde, no Cemitério Vila Nova Cachoeirinha. Seu noivo chorava. Ninguém sabia como dizer a sua filha que você saiu para o forró, mas não voltaria nunca mais. Nenhum de seus parentes acredita na Justiça. Jéssica, você não era rica nem famosa, nem filha de celebridade. Sua mãe, Solange, disse não ter esperança de que Vagner fique preso: “Ele se apresentará com um bom advogado. Vamos esperar ele matar outra pessoa, quem sabe aí ele pode ser preso”. Sua prima, Rose, afirmou: “Neste país, não existe o quê? Justiça. Ele (motorista) fugiu do flagrante e não vai acontecer nada, absolutamente nada, nada. É o país da gente”.
No “país da gente”, ninguém sairá nas ruas em protesto contra sua morte nem erguerá o punho cerrado contra seu atropelamento bárbaro. Você virou um número, entre os 45 mil mortos por ano em crimes de trânsito no Brasil. Desse total, 44% morrem atropelados, como você, Jéssica. Quase 20 mil. São dados oficiais e escandalosos do Portal do Trânsito Brasileiro.
Vários pedestres assumem riscos ao atravessar fora da faixa. Em países civilizados, pedestres não são exterminados como moscas. Países civilizados jamais deixariam em liberdade um atropelador como Vagner, com sua biografia pregressa de infrator compulsivo. As causas principais de atropelamento com morte são bem conhecidas: velocidade não compatível com a segurança, falta de atenção, desobediência à sinalização, uso de drogas e bebidas.
Perdão, Jéssica, mas, no “país da gente”, sua história não dá manchete.
0 comments:
Postar um comentário