Em seus primeiros meses de governo, quando ainda assombrava a segurança presidencial com sua tendência a quebrar protocolos e se misturar a multidões, Luiz Inácio Lula da Silva deu uma resposta curiosa quando indagado se não temia ser vítima de um atentado. No Brasil, segundo Lula, não existiria “tradição de matar o presidente”. O raciocínio é compreensível. Ao tomar posse, em 2003, Lula tinha 57 anos. Um norte-americano da mesma idade já teria visto projéteis dispararem em direção ao mais alto mandatário de sua nação por duas vezes. E certamente seria capaz de descrever com riqueza de detalhes onde estava e o que fazia no momento em que soube que os tiros haviam sido fatais, em 22 de novembro de 1963.
Para a geração nascida entre os anos 1940 e 1980, à qual pertence o autor deste artigo, as imagens do assassinato do presidente americano John Fitzgerald Kennedy tinham algo de recorrente e inapelável. O que faltava em nitidez àquele impressionante filme em preto e branco, sobrava em dramaticidade: o carro que avança devagar, o estremecimento e em seguida o escorregar dos corpos do presidente e do governador John Connally sob o impacto da mesma bala e o desespero da primeira-dama. Como Jesus, Kennedy morreu muitas vezes diante de nossos olhos, do café da manhã à hora das crianças irem dormir.
No caso brasileiro, Lula tinha razão apenas em parte ao afirmar que não há entre nós tradição de atentado contra a vida do presidente da República.
Em 1897, numa solenidade de recepção no Rio às forças que retornavam da Campanha de Canudos, o soldado Marcelino Bispo de Melo mirou o presidente Prudente de Moraes com uma garrucha, que negou fogo. Em seguida empunhou uma faca, mas foi interceptado pelo ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt, a quem feriu de morte. Prudente, o presidente de quem partira a ordem para que não ficasse “pedra sobre pedra” em Canudos (raramente uma determinação presidencial foi obedecida com tanto zelo em nossa história), nada sofreu.
Quarenta e um anos depois, em 1938, conspiradores integralistas invadiram o Palácio Guanabara, na zona sul do Rio. Presidente de um regime modernizador desde 1930, Getúlio Vargas articulara um autogolpe em novembro de 1937 e se tornara ditador. Os integralistas, antes aliados do governo, viram-se alijados do poder e reagiram à bala. Dois caminhões cheios de rebeldes ingressaram nos jardins do Guanabara e metralharam a residência. “Uma bala solitária entrou zunindo dentro do gabinete, em direção à cadeira em que papai costumava sentar para escrever, e estraçalhou as encadernações de vários livros na estante”, escreveu Alzira Vargas do Amaral Peixoto, filha do presidente, em suas memórias. No dia seguinte, o depoimento de Alzira e a foto da estante alvejada estavam na capa de um jornal carioca. Getúlio saiu ileso. O levante foi repelido, e os integralistas, levados à prisão ou ao exílio.
A esses ataques frustrados poderiam ser somados o suicídio do próprio Vargas e a violência simbólica, mas muito real, que privou de direitos políticos e expulsou da vida pública Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart depois de 1964. Por tudo isso, fica claro que a instituição presidencial brasileira não vive ao amparo de uma sacrossanta cordialidade nacional, e sim esteve muitas vezes perigosamente exposta à sanha das armas.
Se, como quer Lula, não existe entre nós tradição de matar o presidente, não é por falta de tentativa. Resta-nos comemorar a falta de pontaria dos que se arriscaram.
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