Jornalista Andrade Junior

domingo, 19 de julho de 2020

"Ponto zero",

por J.R. Guzzo

   FOTO ANDRADE JUNIOR
Brasil acaba de criar um princípio revolucionário no campo do Direito Público: a Constituição, de acordo com essa novidade, pode ser inconstitucional. 
É o que resulta da decisão do STF que proíbe a redução de salários dos funcionários públicos brasileiros, mesmo durante uma situação de emergência extrema como a atual, e sob qualquer fórmula administrativa de cálculo. 
E se essa possível redução vier acompanhada da redução das horas de trabalho que o servidor tem de dar diariamente ao público? 
Nesse caso não haveria diminuição salarial nenhuma, não é mesmo? 
Quem ganha menos ao trabalhar menos está, na aritmética, ganhando exatamente a mesma coisa. 
Não, senhor – também não pode. 
Ficamos da seguinte forma, então: os cidadãos brasileiros, por decisão judicial, são desiguais perante a lei. 
É isso mesmo, exatamente. 
É legal reduzir o salário de todas as pessoas que trabalham na iniciativa privada, sem nenhuma exceção, como ocorre na presente epidemia da covid-19
É ilegal reduzir o salário de qualquer das 12 milhões de pessoas que trabalham no setor público, também sem nenhuma exceção. 
O que se vai fazer, então, com o artigo 5.º da Constituição Federal? 
Está escrito ali o seguinte: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. 
Mais claro que isso não é possível; em nenhum lugar está escrito que pode haver distinção de natureza salarial, por exemplo. 
Como o STF decidiu que é inconstitucional reduzir a remuneração dos funcionários públicos, só dá para chegar a uma conclusão: o artigo 5.º da Constituição é inconstitucional.
É nisso que dá viver em sociedades que deixam de ser governadas por leis e passam a ser governadas por pessoas, como é o caso do Brasil de hoje. 
Os direitos do cidadão e as liberdades civis começam a depender dos desejos, interesses e caprichos dos que mandam – passam a não valer nada, na verdade, pois o que não vale para todos por igual, e durante o tempo todo, é uma contrafação da democracia.
 Nenhuma nação é verdadeiramente livre se não colocar o império da lei acima de tudo. 
O Brasil não faz isso. 
O que está acima de tudo, aqui, é a vontade de onze magistrados que não foram eleitos por ninguém, e que estão no galho mais alto do Poder Judiciário, e de mais meia dúzia de políticos que operam não como atores legítimos do Poder Legislativo, e sim como chefes de gangue. 
A consequência é o que se vê aí todos os dias: um país intoxicado pela utilização velhaca do poder, o tempo todo, para defender os direitos de uns por meio da negação dos direitos dos outros. 
Virou um fato da vida, aceito com conformismo, covardia ou má-fé pelas elites intelectuais e seus subúrbios, que os ministros do STF escolham livremente, e sem dar satisfação a ninguém, quais das 77 garantias fundamentais estabelecidas pela Constituição Federal devem ou não devem ser aplicadas. 
No momento, por exemplo, acham que não está valendo a regra que garante aos advogados de um acusado o acesso a todos os documentos do processo judicial; só mostram o que o ministro fulano de tal deixa. 
Em compensação, os ministros atribuem a si mesmos direitos que não estão previstos em lugar nenhum da Constituição, como o de fazerem, eles próprios, um inquérito policial. 
Da mesma forma, os direitos do cidadão a ter sua voz ouvida pelo Congresso foram anulados pelos presidentes do Senado e da Câmara – eleitos com uma quantidade miserável de votos, por conta das depravações de um sistema eleitoral suicida, mas habilitados a colocar em votação só os projetos que interessam a eles e a seus clientes.
A democracia brasileira está chegando perto do ponto zero.

O Estado de S.Paulo














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