editorial do Estadão
FOTO ANDRADE JUNIOR
Como não há insulto ao qual não se possa adicionar a injúria, o Senado
decidiu aplicar a seus servidores já neste mês, inclusive para o 13.º
salário, o novo teto remuneratório do funcionalismo público.
Estabelecido depois de vergonhoso arranjo entre os Poderes Executivo e
Judiciário, o novo teto deveria valer somente a partir do ano que vem,
mas a Mesa do Senado resolveu favorecer desde já os servidores que hoje
acumulam vencimentos que superam o limite atual, de R$ 33,7 mil, e
portanto estão sujeitos ao desconto do chamado “abate teto” – mecanismo
que corta do salário tudo o que supera aquele limite.
Com o novo teto, de R$ 39,2 mil, esses servidores receberão agora o que
os ministros do Supremo Tribunal Federal, para os quais o aumento
salarial se aplicava originalmente, só ganharão em 2019. Nem é o caso de
discutir aqui se o impacto disso no Orçamento será grande ou pequeno; o
que chama a atenção é que, ao comportamento deplorável dos
sindicalistas de toga e à leniência do Executivo, soma-se o oportunismo
do Legislativo, cuja ânsia de aumentar os contracheques criou um
inusitado “efeito cascata invertido” – em que a consequência do aumento
do teto do funcionalismo acontece antes mesmo de seu próprio fator
gerador.
Tal desfecho é condizente com todo o processo que resultou no aumento
para os ministros do Supremo. O País testemunhou, impotente, a nata do
Judiciário desfigurar a Constituição para obter o reajuste salarial que
reivindicavam.
Primeiro, por meio de uma liminar, o Supremo estendeu a concessão do
auxílio-moradia para todos os magistrados e procuradores do País, mesmo
para aqueles que possuem imóvel na cidade em que trabalham. Não faltaram
ministros que se dispuseram a insultar a inteligência do contribuinte
ao tentar justificar tamanha desfaçatez, quando já estava claro que o
auxílio-moradia estava sendo de fato incorporado ao salário.
A manobra ficou ainda mais explícita quando o Supremo, na negociação com
os demais Poderes, ofereceu barganhar o fim do auxílio-moradia pela
incorporação desse valor ao salário. Um verdadeiro quid pro quo, expressão latina para o famoso toma lá dá cá. Ou seja, o Supremo criou um problema para vender uma solução.
E nada impede que isso possa voltar a ser feito no futuro, já que, como
salientou o ministro Luiz Fux, autor da liminar que havia presenteado
todos os magistrados do País com o auxílio-moradia, “a Constituição é um
documento vivo, em constante processo de significação e
ressignificação”. Ou seja, sempre que houver necessidade, o Supremo
encontrará justificativas hermenêuticas para impor seus interesses
corporativos, fazendo para isso a leitura constitucional que lhe
aprouver.
A decisão do Senado de aplicar desde já um aumento salarial que só
deveria ser pago no ano que vem é a consequência lógica do pensamento
segundo o qual o interesse do corpo de funcionários públicos estará
sempre acima dos interesses dos contribuintes que o sustentam – sempre
sob o argumento de que esses servidores estão a desempenhar papel
crucial para o bom funcionamento do País e, por isso, merecem tratamento
diferenciado em relação ao resto dos trabalhadores. Como a ilustrar
esse ponto, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, argumentou que o
reajuste serviria para “resgatar a dignidade da magistratura” e que, sem
o aumento, “a magistratura para”. E o ministro perguntou: “Quem é que
vai pôr as pessoas na cadeia? Eles vão se ‘auto-pôr’ na cadeia?”.
Nem é preciso lembrar que os servidores públicos, com destaque para os
do Judiciário, já são, na média, os trabalhadores mais bem pagos do
País; tampouco é preciso recordar que tanto os juízes como os
legisladores brasileiros estão entre os mais bem remunerados do mundo,
com benefícios que não se encontram em nenhum outro lugar. O mais
importante a salientar em tudo isso é a total incapacidade dessas
corporações de entender a dura situação do País, com alto desemprego e
contas públicas em frangalhos. O fato de que podem, numa canetada,
atender a seus interesses trabalhistas não significa que devam fazê-lo.
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