por Carlos Andreazza
Folheio os modestos cantos dedicados à literatura em nossos jornais e revistas, e o que vejo é a insistência no mesmo olhar elitista – só lacração, só lugar de fala (a carteirada que aliena), só pauta progressista da Vila Madalena — que cultiva peculiar senso moral sobre o que seja preconceito, e que afinal, claro, tombou cego ante (para) o fenômeno popular Jair Bolsonaro, mas que ainda se avalia em posição de ser a voz dos oprimidos; estes, os oprimidos brasileiros segundo os grupos de pressão nacionais, uma criação ficcional de realismo à altura do que conceberia um militante do PSOL holandês. Ninguém, senão a patota, se interessa. Mano Brown já deu a letra. A festa, porém, continua; a que não raro financia o crime organizado. Sabe? A farra cujos costumes bancam a importação dos fuzis confundidos com guarda-chuvas.
Aliás, o carnaval já desponta. No sambódromo, propriedade pública governada por bicheiros e milicianos, será um espetáculo de hipocrisia e cinismo — inclusive jornalístico. A gloriosa Mangueira, de badalado carnavalesco, fará homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco — a mesma Mangueira cujo presidente, o deputado que paga o carnavalesco, está preso, acusado de partícipe na organização criminosa que assaltou o Rio de Janeiro.
Quem matou Marielle?
Mas folheio. Que literatura é esta? Nada sobre o mundo real; aquele em que vem a chuva e os barrancos descem, tragando as gentes sem distinção de cor e gênero. Nada sobre as ocorrências e circunstâncias que tocam — abalam — a vida das pessoas de verdade, aquelas que existem, que balançam como pingentes no trem, que não sabem se os seus chegarão vivos ao fim do dia, e que não estão preocupadas com a forma performática como os outros trepam nem com quem.
Tendo lido “Tragédia em Mariana”, o tal livro entre os mais importantes lançados no Brasil neste 2018, a pergunta que faço é: como será possível uma reportagem desta envergadura — sobre o maior crime ambiental da história brasileira — não haver merecido nem sequer uma resenha em grande veículo? Seria o caso de soltar um apelo corporativista: se vai o jornalismo sob tamanho ataque (em parte graças à soberba de seus operadores), como prescindir de exaltar a obra jornalística monumental que Cristina Serra esculpiu?
O trabalho me fez lembrar do que Malu Gaspar alcançou com o seu “Tudo ou nada”. É a característica de uma investigação obstinada: como produto, não mais apenas a reconstituição da trajetória de Eike Batista e seus golpes, ou o relato da sucessão de incompetência, ganância, negligência, corrupção e burocracia que resultou no rompimento da barragem de Fundão; mas a história de um país, o espírito de uma época captado.
Desde novembro de 2015 e durante mais de dois anos, Cristina Serra mergulhou no lamaçal que a enxurrada de lama da Samarco expôs. O resultado é obviedade da qual se esconder: o Brasil que não é Bento Rodrigues, o povoado afogado pela massa de rejeitos, é exceção. (Anda blindado e está tocando violão em Ipanema.)
A leitura deste livro-reportagem nunca deixou de me inteirar e reptar; de me tentar e enojar; de me emocionar e enfurecer. Isto porque o país está todo ali. Sobretudo na expressão de uma dobradinha disfuncional frequente, a própria musculatura da injustiça, da desproteção: Estado, o que deveria fiscalizar, e iniciativa privada, a que deveria promover oportunidades, articulados contra a sociedade. A lama de desprezo — produto previsível da cobiça e da omissão — que corre, diariamente, para cobrir o curso dos rios, o norte de nossas vidas, que polui de medo a água, a que perdemos a fé em beber, até manchar de morte o mar, aquele sobre o qual navegamos nossa jangada de pedra.
“Tragédia em Mariana” consiste numa aula sobre como escrever narrativa não ficcional. É ao mesmo tempo thriller, porque engancha como um filme de ação; investigação, porque revela e destrinça documentos inéditos, procedimentos criminosos e condutas vergonhosas; e cidadania, porque jamais se afasta da dimensão humana, do componente individual, do mundo real, particular, essencialmente precário, efêmero, da vida como ela é quando diante da desgraça: a luta por sobreviver no momento mesmo em que se dá, a memória dos que morreram, as pequenas mortes dos que restaram, os desejos miúdos dos que gostariam de recomeçar, aqueles para os quais encontrar uma foto de família — umazinha só — em meio aos escombros bastaria como pedra fundamental.
O Globoextraídaderota2014blogspot
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