EDITORIAL GAZETA DO POVO-PR
Desta vez, a panaceia da intervenção ressurgiu no debate público depois de o general Antonio Hamilton Mourão, em uma palestra realizada no último dia 15, em Brasília, dar seu diagnóstico para uma possível saída da atual crise política no Brasil. “Quando nós olhamos com temor e com tristeza os fatos que estão nos cercando, a gente diz: ‘Pô, por que não vamos derrubar esse troço todo?’ (…) Ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso”, afirmou.
Nenhum país democrático está livre de crises políticas e institucionais
Embora o Comando do Exército tenha colocado panos quentes sobre o assunto depois de as declarações terem levantado justificada reação por parte da sociedade civil, Mourão deveria ter sido punido, pois apologia de ruptura do regime constitucional é crime e – o que está além de qualquer dúvida – o artigo 142 da Constituição Federal, tão celebrado pelos criptogolpistas em seus eufemismos, só permite a intervenção das forças armadas com uma convocação por um dos legítimos poderes constitucionais, sob autoridade suprema do presidente da República, nas hipóteses previstas de defesa da pátria, garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem. Em matéria tão grave, não há interpretação ampliativa da Constituição: romper a ordem constitucional abriria a caixa de Pandora do arbítrio e o caminho para toda sorte de aventureiros e carreiristas irresponsáveis.
Imprescindível repisar essas questões, mas a persistência do ideário golpista convida a uma reflexão mais detida. Há quatro fatores que se sobressaem na explicação do apelo dessa ideia. Um deles o Brasil compartilha com o mundo: o sentimento difuso de descontentamento com as elites tradicionais, a “crise de representatividade” que coloca desafios importantes, ainda sem resposta adequada, aos sistemas de governo ocidentais e a líderes políticos incapazes de inspirar e liderar as pessoas que pretendem governar.
No Brasil, a situação é agravada pelo atascadeiro em que nossos dirigentes se meteram, depois dos anos de descalabro petista; pela maior crise econômica de nossa história, que rouba do povo desde seus meios de subsistência até a confiança no futuro, fomentando o ressentimento social contra “tudo que está aí”; e pela falência do atual modelo de segurança pública, um dos maiores fracassos da redemocratização brasileira: desde 1988, a sensação de insegurança e a gravidade dos crimes no atacado só fez crescer – em 2015, foram 59 mil homicídios no país – embora, é bom frisar, o problema tenha começado antes, ainda no Regime Militar.
É compreensível que o povo brasileiro esteja estafado: o Brasil aparece em último lugar no quesito “confiança do público nos políticos,” dentre 137 países, no último Índice de Competitividade Global, divulgado nesta semana. Mas é alvissareiro que uma louvável sugestão de resposta a esse cansaço tenha vindo de um militar de alta patente. Na terça-feira (26), em Porto Alegre, o general Edson Leal Pujol, comandante militar do Sul, reconhecendo a insatisfação que grassa, em resposta a uma pergunta sobre “quem nos mostrará o caminho”, afirmou que “se vocês estão insatisfeitos, vão para a rua se manifestar, mostrar, ordeiramente. Mas não é para incendiar o país, não é isso”. Felizmente, há militares – por certo, a maioria deles – que entendem os caminhos da lei e o valor da democracia e que reforçam, com palavras e atos, a saudável opção que as Forças Armadas fizeram por abandonar o ideal salvacionista que marcou sua história até 1988.
É verdade que a democracia já foi descrita como “a pior forma de governo, exceto por todas as outras”, mas é bem mais que isso. Ela é a única forma de governo já inventada pela humanidade que respeita plenamente a dignidade inegociável dos seres humanos, convidando-os a ser protagonistas de suas próprias histórias. Ao mesmo tempo, a democracia garante as condições desse protagonismo, quer respeitando os direitos dos indivíduos e lhes fornecendo regras claras e previsíveis – daí o valor do Estado de Direito –, quer os convidando a realizar-se plenamente no espaço público pela defesa de suas ideias e convicções, por meio do diálogo perene, em direção ao futuro comum que almejam.
Justamente porque a democracia deve ser o governo de todos nós, pactuado entre todos, a cada momento, por vezes em negociações desgastantes, ela nunca será perfeita. Nenhum país democrático está livre de crises políticas e institucionais que, periodicamente, convidam os cidadãos a exorcizarem seus fantasmas, tirarem seus esqueletos do armário e a repensarem, com respeito às regras estabelecidas, seu papel nessa verdadeira odisseia coletiva. É a primeira vez que a cidadania brasileira tem a chance de resolver seus próprios problemas, achando ela mesma a saída dos redemoinhos em que se colocou. Não há imaginar que qualquer intervenção messiânica virá pôr ordem na casa desde fora, pois não há quem esteja fora do barco. E se mar calmo nunca fez bom marinheiro, oxalá aprendamos a navegar com ainda mais maestria.
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