José Nêumanne:
O episódio escancarou o antagonismo de ideias entre eles, mas também é eloquente no que diz respeito ao conceito que os dois têm de sua missão naquele colegiado. Ambos estão frequentemente em lados opostos nos julgamentos relacionados aos escândalos de corrupção no País, nos quais a Corte se tem mostrado dividida. Barroso é da Primeira Turma, que produz decisões majoritárias mais severas, nas quais ele é normalmente acompanhado por Rosa Weber e Luiz Fux. O outro, também presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e da Segunda Turma do STF, produz sempre jurisprudência menos punitiva.
Barroso, que tinha uma próspera banca de advocacia criminal no Rio, tornou-se uma espécie de cruzado do combate à corrupção nos moldes defendidos por procuradores, especialmente os da Operação Lava Jato, e juízes federais, tais como Sergio Moro, de Curitiba, Marcelo Bretas, do Rio, e Vallisney de Souza Oliveira, de Brasília.
Gilmar Mendes, procurador de origem, indicado para a cúpula do Judiciário pelo ex-presidente tucano Fernando Henrique na época em que foi advogado-geral da União, tem protagonizado casos polêmicos de concessão de habeas corpus a condenados de seu convívio pessoal. Soltou o “rei dos ônibus” do Rio, Jacob Barata, de cuja filha foi padrinho de casamento. Negou-se ainda a se considerar impedido ao julgar (favoravelmente) o pedido de liberdade do empresário Eike Batista, cliente da banca advocatícia de Sérgio Bermudes, ao qual é associada sua mulher, Guiomar Mendes, responsável pelos negócios da sociedade na capital federal, onde o marido pontifica. Alegou que a consorte não participava ativamente da defesa do notório cliente para dizer-se em paz com a consciência quando decidiu livrar o cliente de Bermudes dos incômodos do inferno prisional brasileiro. Não se pode, contudo, atribuir a Sua Excelência – que leva muito em conta sua condição de “supremo”, conforme já declarou publicamente – um vezo exclusivo de libertar apenas alguns privilegiados participantes de seu convívio familiar. O ministro, aliás, contestou vivamente que ser padrinho de casamento de alguém estabeleça algum laço de família. Sua disposição de conceder habeas corpus solicitados ao Supremo é ampla, geral e irrestrita, como pedia a esquerda que a anistia fosse, em priscas eras do regime de arbítrio dos militares.
Ironias à parte, o dr. Mendes leva em conta em seus julgamentos uma sólida convicção garantista, ou seja, considera-se um vigilante defensor dos direitos individuais dos cidadãos levados às barras dos tribunais para pagar por eventuais delitos cometidos. O dr. Barroso, quando foi escolhido para o pináculo profissional, era tido como um criminalista bem sucedido que tinha tudo para seguir a mesma linha ideológica do ponto de vista jurídico. Qual não foi, contudo, a surpresa geral, quando se tornou o martelo sempre disponível para quebrar a sólida ossatura que a corrupção endêmica acumulou em anos de foro. Mendes assumiu a postura de soltador-geral da República. Foi ele, por exemplo, o principal protagonista do histórico (no pior sentido possível) julgamento em que a chapa Dilma-Temer, reeleita em 2014, foi absolvida em julgamento no TSE não por insuficiência, como é tradição no complicado cipoal judiciário nacional, mas por excesso de provas. O dr. Barroso tem percorrido o Brasil em vilegiatura para pregar perseguição plena aos corruptos em geral, neste momento tratados como se fossem os únicos responsáveis por todos os males que assolam a República.
Não se iluda, contudo, o leitor imaginando que os dois ilustres varões tenham trocado insultos disfarçados em metáforas e eufemismos por causa dessa nobre missão de punir culpados e garantir direitos de quem não deve ser apenado se não houver culpa comprovada, com contraditório irrestrito e obediência a todos os recursos garantidos pela leniente legislação criminal brasileira, particularmente quando tratam de cidadãos abonados que possam ter suas querelas julgadas na Praça dos Três Poderes. Os motivos da transformação do STF em MMA foram pessoais, sem conexão alguma com elevados conceitos de jurisprudência.
Por falar na dita cuja palavra que encerra o parágrafo anterior, o carioca Barroso disse que o mato-grossense Gilmar “vai mudando a jurisprudência de acordo com o réu” e que promove não o Estado de Direito, mas um “Estado de compadrio”. Também afirmou que o colega tem “leniência em relação à criminalidade de colarinho branco”. Tratar essa acusação como mera farpa, como o fizeram os noticiaristas da nada republicana peleja, é uma imprópria licenciosidade de estilo.
O “garantista” Gilmar Mendes, por sua vez, atribuiu ao “punitivista” Barroso a pecha de fazer “populismo com prisões”. Gilmar também ironizou o fato de o desafeto colega ter defendido “bandido internacional” – em referência indireta ao caso do italiano Cesare Battisti, de quem Barroso foi advogado antes de integrar a Corte. Mais do que grosseira, a acusação é absolutamente imprópria. Em primeiro lugar, Barroso não era ministro do Supremo quando defendeu o terrorista italiano, impropriamente definido na imprensa como “ativista” ou “ex-ativista”. E, na condição de profissional do Direito Criminal, não seria ético negar defesa nem ao réu menos qualificado. Não há réus bons ou maus, como são definidos os ladrões condenados à crucificação junto com o Cristo. Os réus são apenas e tão somente réus e todos, sem exceção, têm direito a ampla defesa. O comentário mostra que o dr. Gilmar é muito leniente em relação às próprias suspeições, mas exigente demais em relação às alheias.
A discussão entre eles ocorreu em julgamento sobre a extinção do Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará (TCM-CE), quando um falou mal do Estado de origem do outro. De forma desrespeitosa, Mendes usou contra o adversário a crise que aflige o Rio, cidade dele. E Barroso usou a condição de mato-grossense do opoente de forma preconceituosa.
“Todos nós presenciamos e lastimamos o ocorrido, sem definir quem é culpado e quem não é culpado”, comentou Marco Aurélio Mello, ressaltando que tem “inimizade capital” com um dos interlocutores. Marco Aurélio é desafeto do ministro Gilmar Mendes. No ano passado, Gilmar Mendes sugeriu o impeachment de Marco Aurélio, depois de este haver afastado o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) da presidência da Casa em medida liminar. Em setembro deste ano, em entrevista à Rádio Guaíba, Marco Aurélio disse que Gilmar passou de “todos os limites inimagináveis”, acrescentando: “Caso estivéssemos no século XVIII, o embate acabaria em duelo e eu escolheria um arma de fogo, não uma arma branca”.
Na véspera das lutas de MMA no Ibirapuera em São Paulo, lugar mais apropriado para os atritos dos dois, a Nação também ficou estupefata ao ser informada de que, a pretexto de homenagear os funcionários do Poder Judiciário, a presidente do STF, Cármen Lúcia, que não se cansa de disputar com os outros ministros o protagonismo do baixo nível generalizado, decretou mudança de um feriado funcional de sábado para sexta.
Uma das missões que Lula, Dilma e Temer assumiram para fragilizar a democracia e a credibilidade da República perante o cidadão que paga a conta tem sido realizada plenamente. O Supremo virou um ringue de combates ideológicos e partidários e perdeu o respeito da população. Mas, justiça seja feita, essa desmoralização vem de longe: Celso de Mello foi nomeado por Sarney por indicação personalíssima de Saulo Ramos; Marco Aurélio, pelo primo, Collor de Mello, o carcará sanguinolento; e Gilmar, por Fernando Henrique. A democracia brasileira merecia melhor sorte.
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