por Fernando Gabeira O Globo
As pesquisas confirmam o que quase todos sentimos nas ruas: as pessoas
querem mudança e consideram as eleições de 2018 o melhor caminho para
impulsioná-la. É uma boa notícia, cercada de dados negativos. Um deles é
a reforma política nada amigável às mudanças. O velho sistema político
partidário parte com uma vantagem financeira respeitável: um fundo
eleitoral de R$ 1,8 bilhão.
E a decisão do Supremo é outro dado da blindagem dos políticos: o
Congresso deve rever em 24 horas todas as medidas cautelares que atinjam
o exercício do mandato. Isto significa que, se o STF afastar um
senador, certamente seus pares vão anular a medida. A última palavra,
nesse caso, não pertence mais aos juízes. O sistema político partidário
deve estar comemorando. Aécio também. Mas, se analisarmos o contexto da
disposição popular, essas medidas vão acabar isolando mais ainda os
detentores de mandatos políticos. Pelo menos teoricamente, para se
salvar das investigações e de suas consequências, o sistema partidário
terá de ir mais longe no seu longo processo de suicídio. Naturalmente, a
disposição pela mudança não é suficiente para que ela aconteça. Há
muitas arestas a aparar.
Tenho refletido e lido sobre o conceito de tolerância. Cheguei à
conclusão de que é muito flexível, depende de circunstâncias históricas,
de quem tolera ou é tolerado. A tolerância como conceito moderno nasceu
do liberalismo e é um fruto das guerras religiosas e da separação entre
as autoridades do estado e da igreja, abrindo uma brecha para o
indivíduo diante dessas forças gigantescas. Mais urgente que falar dela é
tentar entender o quadro em que se move.
Tenho observado um deslocamento de calores no debate político
brasileiro. No período anterior à queda de Dilma, o confronto se dava,
além, é claro, da roubalheira, em torno de sistemas políticos. Tanto que
os adversários do PT sempre diziam: “vai para Cuba, vai para Cuba”. Nem
o mais radical dos críticos do artista pelado no MAM ousaria mandá-lo
para Cuba, por achar a pena pesada demais. Toda uma geração de artistas
foi esmagada pela revolução cubana — isto é bem descrito nos livros de
Reinaldo Arenas. Durante muito tempo, a revolução decidiu encerrar
homossexuais em campos de trabalho.
A sensação que tenho é de que o choque entre socialismo e capitalismo
está em segundo plano. Sobe para o topo uma espécie de resistência à
globalização e suas tendências multiculturais. Isso aconteceu na eleição
de Trump e também na vitória do Brexit. Só que até nos Estados Unidos a
globalização é sentida por alguns setores como uma ameaça econômica,
perda de postos de trabalho, ruína de regiões que perdem sua
competitividade global. No Brasil ninguém vê a globalização como causa
da crise. Todos sabem que a nossa foi causada pela incompetência e pela
corrupção das forças internas. No entanto, no campo dos costumes e,
sobretudo, com a aceleração do mundo digital, muitas famílias se sentem
inseguras diante de rápidas mudanças e temem por seus valores, tradição e
até mesmo pela ideia que têm da própria identidade nacional.
O debate sobre os caminhos da saída econômica revela uma predominância
do liberalismo. Ainda assim, no Brasil, isso precisa ser relativizado. O
MBL, um movimento que se destacou na oposição ao governo de esquerda,
tem uma clara opção liberal. No entanto, nos temas comportamentais,
aproxima-se da posição de Bolsonaro. Este, por sua vez, apesar de seu
enfoque nacionalista, se aproxima do liberalismo econômico. Essa
discrepância em adotar o liberalismo econômico, abertura para o mundo,
e, simultaneamente, combater algumas de suas consequências é apenas um
dado. Os chineses sabem combinar elementos de liberalismo econômico com
seu regime político de um só partido. Posições liberais na economia não
correspondem mecanicamente a uma posição liberal nos costumes. Aqui, os
artistas continuarão produzindo com liberdade e, em certos momentos,
sendo provocativos como têm sido em toda a história da arte. E uma
maioria da população tende a sentir-se ultrajada por saber que, apesar
de maioria, sua visão de mundo não é levada em conta. Verdades políticas
surgem daí. As duas mais visíveis são a tentativa de articular o
desconforto com certas consequências do mundo moderno e a outra se
entrincheirar em ideias de vanguarda descartando a opinião majoritária
como atrasada. Nenhuma delas me parece adequada para o Brasil.
A admiração com que Barack Obama foi recebido aqui mostra que existe uma
simpatia por posições que tentam navegar de olhos abertos para um mundo
em transformação sem perder o contato com o fio terra. A própria Angela
Merkel venceu uma grande batalha pela tolerância ao receber os
imigrantes. Conseguiu se reeleger. Sempre foi crítica da trajetória do
multiculturalismo, que acaba deixando ao relento o pobre, que não está
integrado em nenhuma das identidades culturais que disputam o espaço.
Isso que chamo de pé na terra, por falta de melhor definição, pode ser, no Brasil, essencial para tirar o barco do lodo.
EXTRA´DADE ROTA2014BLOGSPOT
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