#vamosmudarbrasilia
Publicado na edição impressa de VEJA
J. R. GUZZO
Nunca antes na história deste país tinha acontecido nada igual. Não só na história deste país: o que se viu no 8 de julho de 2014, um dia que viverá para sempre, jamais tinha ocorrido em 100 anos de existência da seleção nacional de futebol. Também não havia acontecido em toda a história da Copa do Mundo desde a sua criação, em 1930 – não num jogo de semifinal, disputa privativa de gigantes da bola. Pois aconteceu: a Alemanha enfiou 7 a 1 no Brasil, comprovando uma vez mais que tudo o que não é impossível pelas leis da natureza é, por definição, possível de acontecer um dia qualquer. Quem poderia imaginar um resultado desses? Seria mais fácil o velho camelo da Bíblia passar pelo buraco de uma agulha. Mas os camelos do futebol, como se vê no mundo das realidades, são bichos capazes de fazer as coisas mais incríveis. Fizeram de novo, no Estádio de Minas Gerais. Fim de linha para a seleção e para o “hexa”, por falência de múltiplos órgãos.
E daí? E daí nada, realmente – apenas uma derrota esportiva, risco que existe em toda competição e do qual está livre só quem não compete. Numa sociedade razoavelmente adulta, capaz de separar futebol de honra nacional, felicidade do povo, “vergonha na cara” e outros valores, reais ou imaginários, o massacre que o time do Brasil viveu no Mineirão seria uma derrota horrenda, constrangedora e francamente exótica – mas uma derrota num jogo de bola, só isso, sem nenhum prejuízo material para ninguém, para o país ou para o equilíbrio psicológico de quem quer que seja. Acontece que o Brasil tem uma imensa resistência em ser adulto, e aí a coisa complica. Como resultado da pressão neurótica aplicada ao futebol pelos meios de comunicação e pelo noticiário esportivo, autoridades públicas, políticos em geral, departamentos de marketing de grandes empresas, agências de publicidade e interesses econômicos que envolvem bilhões de dólares, constrói-se sistematicamente no Brasil um ambiente artificial de histeria que contamina a sociedade quase inteira, quando se trata de futebol e de Copa do Mundo. Assim ficam estabelecidas exclusivamente duas possibilidades, ambas falsas: a vitória que transforma a nação num paraíso de coragem, competência e superioridade sobre todos os demais povos do mundo; ou, então, a derrota que nos reduz ao pó, com vergonha, choro e ranger de dentes.
É assim que se criou, entre outras invenções cultivadas com obsessão, a extraordinária lenda segundo a qual o Brasil sofreu um “trauma” sem limites ao perder no jogo final contra o Uruguai no Maracanã, em 1950, na primeira Copa aqui disputada. A derrota é vendida como uma “tragédia” sem igual na história brasileira, um momento de desgraça que jamais poderíamos viver de novo e que clamava aos céus por redenção e vingança – a ser providenciadas, enfim, em 2014, pela graça dos 23 rapazes convocados para a seleção do técnico Luiz Felipe Scolari e dos cartolas da CBF. Mas não existe trauma nenhum – como poderia existir, se apenas os brasileiros hoje com mais de 70 anos estavam vivos em 1950, em idade para entender minimamente o que aconteceu? Ninguém sofre, na vida real, por contrariedades que jamais experimentou. Mas aí está: impõe-se ao país o disparate segundo o qual uma partida de futebol disputada 64 anos atrás, o “Maracanazo”, foi uma bomba atômica jogada no Rio de Janeiro, e que “jamais o Brasil iria permitir” que a calamidade se repetisse nesta segunda Copa sediada pelo Brasil. No jogo contra a Alemanha aconteceu muito pior do que uma repetição: um “Mineirazo”, com inéditos 7 a 1 no lombo.
Essa mesma lavagem cerebral nos força a ficar repetindo que o Brasil é “o país do futebol”, que nenhuma outra nação chega perto da nossa habilidade sobrenatural com a bola e que vamos ganhar sempre por causa da ginga, do jogo de cintura, da malandragem etc., pois amarramos “o coração na chuteira”, somos “brasileiros com muito orgulho” e outras tolices. Aí já é mais que uma mentira: é fazer um grosseiro desaforo aos fatos. O futebol brasileiro vale o mesmo que o jogado em mais uma dúzia de países; com a exceção de Neymar, nossos jogadores, em 2014, são apenas corretos, ou bonzinhos. Os da Alemanha, neste momento, são muito melhores, individualmente e em conjunto. Por um bloqueio mental pré-fabricado pela propaganda, porém, o futebol brasileiro é incapaz de admitir essa realidade singela.
De certo, em tudo isso, só ficou a definição que Dilma Rousseff fez antes do desastre: seu governo é “padrão Felipão”. Até que enfim a presidente acertou bem no alvo.
J. R. GUZZO
Nunca antes na história deste país tinha acontecido nada igual. Não só na história deste país: o que se viu no 8 de julho de 2014, um dia que viverá para sempre, jamais tinha ocorrido em 100 anos de existência da seleção nacional de futebol. Também não havia acontecido em toda a história da Copa do Mundo desde a sua criação, em 1930 – não num jogo de semifinal, disputa privativa de gigantes da bola. Pois aconteceu: a Alemanha enfiou 7 a 1 no Brasil, comprovando uma vez mais que tudo o que não é impossível pelas leis da natureza é, por definição, possível de acontecer um dia qualquer. Quem poderia imaginar um resultado desses? Seria mais fácil o velho camelo da Bíblia passar pelo buraco de uma agulha. Mas os camelos do futebol, como se vê no mundo das realidades, são bichos capazes de fazer as coisas mais incríveis. Fizeram de novo, no Estádio de Minas Gerais. Fim de linha para a seleção e para o “hexa”, por falência de múltiplos órgãos.
E daí? E daí nada, realmente – apenas uma derrota esportiva, risco que existe em toda competição e do qual está livre só quem não compete. Numa sociedade razoavelmente adulta, capaz de separar futebol de honra nacional, felicidade do povo, “vergonha na cara” e outros valores, reais ou imaginários, o massacre que o time do Brasil viveu no Mineirão seria uma derrota horrenda, constrangedora e francamente exótica – mas uma derrota num jogo de bola, só isso, sem nenhum prejuízo material para ninguém, para o país ou para o equilíbrio psicológico de quem quer que seja. Acontece que o Brasil tem uma imensa resistência em ser adulto, e aí a coisa complica. Como resultado da pressão neurótica aplicada ao futebol pelos meios de comunicação e pelo noticiário esportivo, autoridades públicas, políticos em geral, departamentos de marketing de grandes empresas, agências de publicidade e interesses econômicos que envolvem bilhões de dólares, constrói-se sistematicamente no Brasil um ambiente artificial de histeria que contamina a sociedade quase inteira, quando se trata de futebol e de Copa do Mundo. Assim ficam estabelecidas exclusivamente duas possibilidades, ambas falsas: a vitória que transforma a nação num paraíso de coragem, competência e superioridade sobre todos os demais povos do mundo; ou, então, a derrota que nos reduz ao pó, com vergonha, choro e ranger de dentes.
É assim que se criou, entre outras invenções cultivadas com obsessão, a extraordinária lenda segundo a qual o Brasil sofreu um “trauma” sem limites ao perder no jogo final contra o Uruguai no Maracanã, em 1950, na primeira Copa aqui disputada. A derrota é vendida como uma “tragédia” sem igual na história brasileira, um momento de desgraça que jamais poderíamos viver de novo e que clamava aos céus por redenção e vingança – a ser providenciadas, enfim, em 2014, pela graça dos 23 rapazes convocados para a seleção do técnico Luiz Felipe Scolari e dos cartolas da CBF. Mas não existe trauma nenhum – como poderia existir, se apenas os brasileiros hoje com mais de 70 anos estavam vivos em 1950, em idade para entender minimamente o que aconteceu? Ninguém sofre, na vida real, por contrariedades que jamais experimentou. Mas aí está: impõe-se ao país o disparate segundo o qual uma partida de futebol disputada 64 anos atrás, o “Maracanazo”, foi uma bomba atômica jogada no Rio de Janeiro, e que “jamais o Brasil iria permitir” que a calamidade se repetisse nesta segunda Copa sediada pelo Brasil. No jogo contra a Alemanha aconteceu muito pior do que uma repetição: um “Mineirazo”, com inéditos 7 a 1 no lombo.
Essa mesma lavagem cerebral nos força a ficar repetindo que o Brasil é “o país do futebol”, que nenhuma outra nação chega perto da nossa habilidade sobrenatural com a bola e que vamos ganhar sempre por causa da ginga, do jogo de cintura, da malandragem etc., pois amarramos “o coração na chuteira”, somos “brasileiros com muito orgulho” e outras tolices. Aí já é mais que uma mentira: é fazer um grosseiro desaforo aos fatos. O futebol brasileiro vale o mesmo que o jogado em mais uma dúzia de países; com a exceção de Neymar, nossos jogadores, em 2014, são apenas corretos, ou bonzinhos. Os da Alemanha, neste momento, são muito melhores, individualmente e em conjunto. Por um bloqueio mental pré-fabricado pela propaganda, porém, o futebol brasileiro é incapaz de admitir essa realidade singela.
De certo, em tudo isso, só ficou a definição que Dilma Rousseff fez antes do desastre: seu governo é “padrão Felipão”. Até que enfim a presidente acertou bem no alvo.
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