jornalista José Nêumanne Pinto
Ao difamar relator do mensalão, condenados querem ocultar que decisão foi da maioria
A situação é, no mínimo, sui
generis. Os deputados José Genoino e João Paulo Cunha, ambos do Partido
dos Trabalhadores (PT) de São Paulo, foram condenados por crimes de
corrupção e formação de quadrilha pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Mas fazem parte da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.
Nessa condição, compareceram à
sessão na qual foi aprovada a excrescência jurídica proposta por um
nada ilustrado desconhecido de sua legenda no Piauí, Nazareno Fonteles,
submetendo decisões terminais da última instância da Justiça à vontade
da maioria dos nobres pares parlamentares. Ou seja, excluindo de nosso
Estado Democrático de Direito o sistema de equilíbrio de Poderes
autônomos criado pelo francês Charles-Louis de Secondat, barão de La
Brède e de Montesquieu, um dos enciclopedistas franceses do século 18 e
autor do clássico O Espírito das Leis. É de Montesquieu, como ficou
conhecido pela posteridade, o conceito da autonomia de quem legisla,
executa e julga para que as instituições funcionem em harmonia. Fonteles
discorda e detona. Genoino e João Paulo concordam e aplaudem. Pois bem,
tudo isso está dentro das leis vigentes e não há de que reclamar. Pois
é.
Mas enquanto isso, em nome do
sagrado direito de esgotar todas as possibilidades de defesa que devem
ser concedidas a todo indivíduo para evitar que seja vítima de arbítrio
estatal ou erro judicial, os insignes representantes do povo recorreram
da decisão na instância máxima. E, não satisfeitos com uma eventual
reforma das penas, cuja soma os levará à prisão, após transitadas as
sentenças em julgado no STF, resolveram exigir da colenda Corte que
substitua o relator, atualmente na presidência do tribunal, o ministro
Joaquim Barbosa. Os crimes que foram imputados a Suas Excelências e a
seu companheiro de partido e bravatas José Dirceu foram cometidos há
oito anos, o Supremo levou um ano debatendo o caso e agora os réus
querem trocar o relator…
O que justifica o pedido? Que
absurdo deslize jurídico teria cometido o ministro Barbosa para ser
substituído nos últimos instantes a pedido de réus condenados? Que grave
suspeita de parcialidade pesará sobre ele? Ninguém encontrou um só
ilícito que o presidente do STF tenha cometido ao relatar o caso para
contra ele ser alegada suspeição. O revisor, Ricardo Lewandowski, tem
notórias ligações de amizade com uma personagem do episódio, embora não
tenha sido acusada formalmente de nada, o ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, e atuou sem reserva alguma nem contestação de nenhum dos
famosos (e bem pagos) causídicos que defenderam os acusados.
Não se conhece ainda nenhum
embargo de defensores à atuação no julgamento, com direito a voz e voto,
do ex-advogado do PT José Antônio Dias Toffoli, namorado de uma colega
que representou em causas na Justiça o mais importante e célebre dos
réus condenados no processo, o citado José Dirceu. Os defensores nada
encontraram de irregular nesse notório fato histórico. Nem o próprio
ministro alegou a suspeição, que a qualquer leigo pudesse parecer óbvia,
e julgou os antigos clientes como se nunca tivesse mantido algum tipo
de relação com eles.
Mesmo se não tivesse ocorrido
nenhum desses antecedentes, a tentativa de levantar suspeitas sobre o
relatório de Joaquim Barbosa é infamante. De origem familiar pobre, o
ministro protagonizou uma carreira brilhante no serviço público e,
depois, como profissional do Direito. Consta que teve o nome apreciado
por Lula por indicação do frade dominicano Carlos Alberto Libânio
Christo, o Frei Betto, sobre quem não pode cair nenhuma desconfiança de
desapreço a algum figurão petista julgado, menos ainda ao protagonista
oculto do escândalo, Lula. Aliás, não foi este quem indicou Barbosa para
o STF?
Será, então, o caso de tirar a
relatoria do presidente do STF apenas por ter ele recomendado a
condenação de Dirceu, Genoino, João Paulo e outros? Mas não foi o
relator quem condenou os réus. Primeiramente, eles foram investigados – e
não o foram pelo “Partido da Imprensa Golpista” (PIG), inimiga do
governo, do PT e dos “blogueiros progressistas”, mas por um órgão do
Estado, a Polícia Federal. As provas que explicitaram a culpa dos
condenados no processo foram reunidas por funcionários públicos, os
policiais federais, subordinados hierarquicamente ao ministro da Justiça
e, em última instância, ao presidente da República. A fase de instrução
do processo foi concluída pelos procuradores-gerais da República
Antonio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, nenhum deles nomeado pelo
tucano Fernando Henrique, mas ambos por Lula, sendo o segundo mantido
por Dilma.
E o que Barbosa tem que ver
com isso? Bem, ele teve o trabalho, executado com requintes de lógica
aristotélica, de mostrar por A mais B a seus colegas da Corte como
funcionou o esquema criminoso de compra de apoio de aliados de pequenas
legendas governistas a projetos de interesse do governo petista, do qual
Lula era o presidente e Dirceu, o chefe da Casa Civil. Da competência
do relatório de Barbosa fala melhor o apoio em votos que recebeu de seus
pares, respeitados juristas como ele, do que qualquer elogio que este
escriba leigo lhe fizer. Neste texto cabe apenas lembrar que nenhuma
pena no mensalão foi atribuída pelo voto isolado do relator. A cada voto
seu quase sempre se opunha o revisor e aos restantes membros do
colegiado – primeiro 11, depois 10 e, enfim, 9, em votação majoritária –
coube decidir a sorte dos réus.
No entanto, José Dirceu e seus
colegas de pena tentam desmoralizar o relator para substituí-lo. Em
nome da lógica, a que Barbosa foi fiel, seria mais sensato dissolver o
STF: a asneira proposta por Fonteles é mais sábia do que a douta
representação dos causídicos.
Jornalista, poeta e escritor
(Publicado na Pág.A2 do Estado de S. Paulo)





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