Jornalista Andrade Junior

sábado, 4 de maio de 2013

Canudos e os novos territórios lulistas

Canudos e os novos territórios lulistas

MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA


Canudos resiste. A pequena cidade fundada por Antonio Conselheiro no nordeste da Bahia em 1893 e destruída quatro anos depois continua abandonada pelo poder público. Reconstruída no início do século 20, após o retorno de parte da população conselheirista, a cidade manteve-se isolada até a visita de Getúlio Vargas, em outubro de 1940, e a decisão governamental de construir um açude, obras que terminaram em 1969, obrigando a população a se transferir para o povoado de Cocorobó. Hoje o município tem uma ampla área territorial (2.985 quilômetros quadrados) e uma população de 13.760 pessoas. É paradigmático para tentarmos entender os resultados da eleição presidencial e a grande vitória obtida por Luiz Inácio Lula da Silva na região Nordeste.
A Bahia tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH): está em 22º lugar, entre os 27 Estados. A cidade melhor classificada é a capital, Salvador: ocupa o 475º lugar entre os municípios brasileiros. A região de Canudos é a mais pobre do Estado. Isolada pelas péssimas estradas, sem um eficaz sistema de telefonia (celular não tem sinal na área) e assolada pela seca (o índice pluviométrico do município é um dos mais baixos do estado), os canudenses sobrevivem no limite da pobreza. O poder público federal está ausente: há somente uma agência do Banco do Brasil (e que funciona apenas das 9h às 12h).
O Produto Interno Bruto (PIB) é de pouco mais de R$ 32 milhões. O número de pessoas com registro na carteira profissional não chega a 200 (não há condições para pagar o salário mínimo e muito menos os encargos sociais). No município não há nenhum trator e o principal meio de transporte são as motos (quase 300).
A cidade depende do Fundo de Participação dos Municípios (recebe cerca de R$ 3,5 milhões), pois a receita de impostos é mínima: de IPTU foi arrecadado apenas R$ 8 mil. Há dois hospitais, cada um controlado por um dos coronéis da cidade. Ambos atendem pelo SUS. Em um ano ocorreram 13.563 internações, a média de uma por habitante (segundo dados do IBGE), apesar ter apenas 62 leitos, o que dá uma média de 218 internações por leito (a cidade tem 13 médicos, parte não reside no município).
Canudos vive de uma agricultura de baixíssima produtividade, uma pecuária baseada na criação de bode e do pequeno comércio. Apesar do açude de Cocorobó, com capacidade para armazenar 245 milhões de metros cúbicos de água, metade da cidade não recebe em suas casas o precioso líquido.
Grande parte das águas estão salinizadas e o pequeno distrito irrigado (com a presença de 150 famílias) está em péssimas condições, com a canalização arruinada, fazendo com que a renda média de cada família gire em torno de um salário mínimo mensal, segundo dados do pesquisador Luiz Paulo Neiva da Universidade do Estado da Bahia.
Mesmo com a melhoria dos índices de escolaridade, a maior parte dos jovens não tem emprego fixo. Quando trabalham, vivem de bicos. Não há indústria, atividade agrícola ou comercial que gerem empregos em quantidade suficiente para absorver a força de trabalho. O lazer é inexistente, a gravidez precoce ocorre em escala considerável e a única “diversão” são os bares. Só na principal rua, a avenida Juscelino Kubitschek, em três quarteirões há uma dúzia de bares. O alcoolismo atinge parte da população, assim como o consumo de drogas.
Foi nesta espécie de microcosmos do sertão nordestino que Lula obteve uma folgada vitória no primeiro turno, com 68,4% dos votos, e no segundo ampliou ainda mais a votação, obtendo 78,06%. Alckmin conseguiu 27,3% no primeiro turno e caiu no segundo para 21,94%. Para o governo estadual, o candidato petista, Jaques Wagner, obteve a maioria absoluta dos votos: 54,7%, em grande parte produto da “onda Lula”.
As eleições romperam o domínio dos dois políticos que apresam a cidade, um do PFL, o atual prefeito (Vavá), e o outro do PSDB, ex-prefeito (Zito), que se alternam no poder desde a emancipação do município, em 1985. Na eleição presidencial tinham o mesmo candidato, Geraldo Alckmin, e foram derrotados. Mas o que chama a atenção é o número de eleitores da cidade: 10.655, isto com uma população de 13.760 pessoas, muito acima da média nacional.
O que reforça a necessidade de um recadastramento eleitoral, principalmente se for correta a informação do ministro Carlos Veloso, ex-presidente do TSE, de que no Brasil há 10 milhões de títulos fantasmas (ver Folha de S.Paulo de 16 de setembro de 2006).
É difícil encontrar alguém que não seja beneficiado pelo Bolsa Família. Se em maio eram 1.673 famílias inscritas no programa, em cinco meses, às vésperas da eleição, este número saltou para 2.246: “Não temos emprego. Tenho três filhos. Meu marido só agora arranjou um trabalho. Preferia estar trabalhando. Bolsa Família é bom mas preferia um emprego”, diz Maria José Varjão, 29 anos, estudando o segundo ano do ensino médio. Em 1998 votou em FHC, em 2002 em José Serra, já em 2006 escolheu Lula. Participava dos programas sociais do governo anterior. Dos seis irmãos, três migraram, dois para São Paulo e um para Salvador. Graças a um deles construiu uma casa com o dinheiro que manda mensalmente. Mora ao lado da casa da mãe, aposentada, e que acabou se transformando em arrimo da família. “É o único dinheiro garantido que tem lá em casa.
Meus outros dois irmãos não tem trabalho fixo e quando conseguem algo é provisório: aqui ninguém é registrado”, diz ela. A professora Maria Cláudia Jesus da Silva, 26 anos, nasceu em Canudos. É solteira. Tem nove irmãos. Cinco migraram para Juazeiro, Petrolina e Salvador. Migraram “porque aqui não tem trabalho”. O pai também recebe aposentadoria: “Sem ela não sobrevivemos”.
Uma tia está inscrita no Bolsa Família: tem nove filhos. A professora discorda do programa. Diz que “é um dinheiro fácil”, “não precisa suar”, diz que muitos que recebem não trabalham por vadiagem. Votou em FHC em 1998, mudou para Lula em 2002 e neste ano votou novamente nele.
O padre Lívio, da Igreja Católica, um italiano que está há vários anos em Canudos, considera que o governo Lula pouco fez pela região. Reclama que faltam investimentos. A presença do Estado manifesta-se através do programa Bolsa Família. Tem esperança de que algo pode melhorar. A ação da igreja é muito importante organizando a população na construção de cisternas, apoiando programas de saúde preventiva e no incentivo à agricultura familiar. Na semana anterior ao segundo turno, no sábado à noite teve até carreata. Com fogos.
Claro que pró-Lula. Ninguém dizia que iria votar em Alckmin. E não é exagero. A imagem que os canudenses têm do candidato opositor é de alguém muito distante do cotidiano do sertão. Muitos disseram nem sequer entender o que ele fala, outros que só o conheceram agora, na eleição. Dizem que Lula foi o único presidente “que olhou para nós”. Reconhecem que falta emprego, falam da corrupção (“todo mundo rouba, mas ninguém provou que Lula é ladrão”), estabelecem identidade com a sua história (“Ele sabe o que é seca, o que é sofrimento”) e relacionam Alckmin com ACM.
O semi-árido nordestino virou um território lulista. Sem estabelecer um diálogo político com os milhões que sobrevivem na região, a oposição sofrerá outra grande derrota na próxima eleição. Como disse uma canudense: “Sei que o Lula não vai ser candidato em 2010. Votarei em quem ele mandar”.


 MARCO ANTONIO VILLA é professor de história no departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor de “Jango, um Perfil” (Globo), entre outros livros.

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