Judiciário em Foco
“Os juízes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais pela razão mesma de que não são legisladores. Os juízes não receberam as leis como uma tradição doméstica. (…) Receberam-nas da sociedade viva, ou do soberano, que é representante dessa sociedade.” Quando, em sua obra Dos Delitos e Das Penas, Cesare Beccaria, nos idos do século XVIII, defendeu princípios tão liberais quanto os da legalidade estrita, da separação entre os poderes e da proporcionalidade entre a severidade da punição e a lesividade do delito, talvez o mestre italiano sequer pudesse conceber que sociedades futuras viessem a destruir conquistas civilizacionais e apostassem na instauração de um cenário caótico de injustiça generalizada.
Na semana passada, o CNJ lançou, em parceria com o Planalto, o programa Pena Justa, supostamente destinado a promover uma restruturação em nossa rede prisional. O novo desenho carcerário foi elaborado a partir de uma ação judicial (ADPF), movida pelo Psol junto ao STF, onde a sigla esquerdista pleiteava que togados declarassem o chamado estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário, ordenassem a formulação de um plano de enfrentamento pelo executivo e monitorassem o seu cumprimento. Os pedidos da sigla esquerdista não só foram acatados como ainda deram ensejo, entre nós, ao primeiro processo estrutural, celebrado pelo ministro Barroso como obra “inovadora e revolucionária”.
Sem qualquer previsão na legislação brasileira, seja na Constituição ou nas leis processuais, o tal processo estrutural, importado da praxe judiciária estrangeira pelo mero desejo de togados, representa a negação do processo aprendido na academia e contemplado nas normas. Enquanto este termina mediante a prolação de uma decisão judicial, o processo “inovador” confere ao Judiciário a perigosa prerrogativa de atuar para muito além de suas funções, e até por prazo indeterminado. Segundo o rito alienígena, o trabalho do Supremo passa a ser dividido em três etapas, quais sejam: o reconhecimento de uma situação de massiva violação a direitos fundamentais, a determinação de medidas de enfrentamento pelos gestores e a supervisão de sua implementação, passível de engendrar uma infinidade de deliberações. Revogando o dever de contenção inerente à atividade jurisdicional, a criatividade de outros povos permite que togados deixem de ser apenas árbitros de litígios concretos entre partes determinadas para se tornarem identificadores dos problemas nacionais e, ainda por cima, fomentadores e fiscais de políticas públicas. Em suma, uma esquisitice que se encaixa, como uma luva, ao autoritarismo da nossa elite judiciária, propiciando aos nossos togados uma justificativa adicional para sua atuação como autêntico poder moderador, que paira, supremo, acima dos demais.
A tal ponto empoderados, nossos juízes de cúpula determinaram a realização de um plano nacional de política prisional, a cargo do CNJ e da União, assim como a elaboração de planos estaduais e distrital sobre a mesma matéria. Ao arrepio da Constituição e do próprio regimento interno do conselho, transformaram o órgão fiscalizador da magistratura (CNJ) em autoridade corresponsável pela fixação de metas e diretrizes para o funcionamento do sistema penitenciário. Ademais, foi indisfarçável a violação ao princípio da independência dos poderes, pois, sendo o CNJ presidido pelo mesmo togado à testa do STF, o juiz não-eleito passou a exercer, ao lado do político planaltino, a faculdade de ditar o modus operandi das cadeias.
Não satisfeitos, os supremos ordenaram aos juízes e tribunais que lhes prestassem satisfações sobre a não-aplicação de penas alternativas à prisão, “tendo em conta o quadro dramático do sistema carcerário.” Pisotearam a autonomia decisória assegurada a todos os magistrados, tanto pela Constituição quanto pela Lei Orgânica da Magistratura – Loman, e invocaram o quadro real de superlotação prisional como justificativa à aplicação indiscriminada de cautelares, tais como, por exemplo, o monitoramento por tornozeleira eletrônica. No Brasil das inversões, o STF optou, sem um voto popular sequer, pelo desencarceramento em massa, expondo uma sociedade inteira ao risco concreto de soltura de delinquentes em bandos.
Ao longo de quase 500 páginas e meses remunerados em patamares indecentes, o núcleo planaltino e seus aliados de toga chegaram à versão final do Pena Justa, trazendo um compilado de observações prosélitas e de medidas nocivas à segurança pública. Logo no eixo 1, deparamos com o uso eufemístico da expressão “privação de liberdade” como substituta de “prisão” e com a pretensa solução a ser implementada pelo grupo político-togado: a redução no encarceramento, com olhar diferenciado para populações vulnerabilizadas. Em atentado ao princípio constitucional segundo o qual a responsabilidade penal é pessoal e intransferível, nossos figurões pretenderam transformar a prática delitiva, individual por excelência, em fenômeno coletivo e necessariamente decorrente da precariedade das condições sociais. Sob o mesmo ângulo anti-institucional, buscaram frear a decretação de prisões previstas na legislação e impor o seu abrandamento em favor de autores de delitos, enxergados pelos atuais potentados como pretensas “vítimas” de uma ordem liberal, capitalista e burguesa.
Ainda no tocante ao eixo 1, foi feita menção elogiosa ao chamado “julgamento da maconha”, durante o qual o STF, contrariando a Lei de Drogas e tornando a avocar para si a condição indevida de legislador, extinguiu qualquer possibilidade de sanção penal a indivíduos flagrados de posse de até 40 gramas de maconha. No universo paralelo dos formuladores do Pena Justa, essa deliberação do tribunal teria contribuído para uma “discussão sobre um dos principais fatores responsáveis pelo atual quadro de superlotação prisional”.
No eixo 2, intitulado “inadequação da arquitetura prisional”, são propostos novos parâmetros de habitabilidade das prisões, incluindo-se aí a garantia de acesso a água, esgoto e condições de higiene e salubridade. Tais medidas seriam mesmo necessárias diante das inegáveis condições medievais de nossas masmorras; desde que, porém, não fossem fixadas por togados e, muito menos, implementadas por um grupo político notório por seu envolvimento com obras públicas superfaturadas e executadas em conluio com empreiteiros inescrupulosos.
O eixo 3 trata de pretensas estratégias de reintegração de pessoas egressas do sistema carcerário, dentre as quais as diversas políticas “com especial atenção ao recorte de gênero e raça”. No tom prosélito que permeia todo o documento, togados e planaltinos buscaram associar o fenômeno do encarceramento no Brasil a mais uma manifestação de misoginia e racismo, desconsiderando o livre arbítrio dos apenados e insistindo na velha estética marxista de luta entre classes opressoras e oprimidas.
Outrossim, conforme anunciado no próprio site oficial do STF, serão abertas linhas de crédito, pelo BNDES de Aluísio Mercadante, em benefício de projetos supostamente voltados à reinserção social de ex-detentos e instituídas cotas de emprego em obras do PAC. Bem se pode imaginar a fenda criada para a gastança milionária de recursos públicos, e, por óbvio, para a prática da nossa já proverbial corrupção.
Por fim, o eixo 4 aborda formas de evitar a repetição do tal “estado de coisas inconstitucional”, com grande ênfase para um suposto enfrentamento ao racismo na justiça criminal, mediante a criação de condições institucionais que permitam a responsabilização de agentes públicos por eventual discriminação étnico-racial. Abundância de palavrório inócuo, pois, como deveria ser do conhecimento dos doutos dos tribunais e do ministério da justiça, a adoção de práticas discriminatórias já é suficientemente punida nos termos da Lei de Abuso de Autoridade e de outras normas penais aplicáveis.
Igualmente preocupante foi o destaque conferido, pelo CNJ, ao fenômeno por ele designado como “desrespeito aos precedentes dos tribunais superiores”. Além de reiterado menosprezo à autonomia judicante das demais instâncias, tratou-se de clara repreensão a magistrados que, na aplicação correta da legislação, “descumpram” precedentes benéficos a traficantes ditos primários e de bons antecedentes, independentemente da quantidade de droga com a qual tiverem sido flagrados.
Em meio ao calhamaço de decisões judiciais e de planos de ação do poder público, um silêncio acintoso acerca das reais inquietações geradas pelo ambiente prisional, tais como a circulação impune de celulares, drogas e armamentos entre os detentos, as atrocidades cometidas por grandes facções, a complacência de agentes penitenciários venais e os efeitos deletérios das ordens proferidas por líderes de gangues, do interior de suas celas. Na fala de apresentação do Pena Justa pelo ministro Barroso, uma infinidade de loas aos direitos humanos dos habituais “frequentadores” do cárcere; contudo, nenhuma palavra de arrependimento ou, pelo menos, de benevolência em relação aos milhares de “recém-chegados”, trancafiados apenas por suas opiniões políticas, privados de todas as garantias do devido processo legal, em processos muitas vezes sigilosos, e condenados a penas desproporcionais às condutas a eles imputadas.
Na conceituação de Beccaria, “para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcional ao delito e determinada pela lei.” A depender do Pena Justa, muitas penas cabíveis poderão ser revogadas ou mitigadas, em desacordo com a legislação. A depender do aparelhamento do aparato judicante para fins políticos, penas continuarão sendo usadas como símbolo de uma violência estatal ilegítima. Tristes tempos.
Judiciário em Foco
Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.
PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/pena-justa/
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