por Augusto Nunes
Comparado à turma do PT, Braga Netto merece mais que o Ministério da Defesa. Deveria virar em vida estátua equestre, inaugurada ao som de tambores e clarins
FOTO ANDRADE JUNIOREm paragens menos esquisitas, a era dos generais-presidentes inaugurada em 1964 por Castello Branco e desativada vinte anos depois com a partida de João Figueiredo já seria coisa para historiadores e memorialistas desde 1984.
Mas o País do Carnaval, como vivia lembrando Tom Jobim, decididamente não é para principiantes (talvez tenha deixado de ser até para profissionais).
Faz 57 anos que está na prorrogação o Fla-Flu que deveria ter terminado naquele 31 de março (1º de abril, corrigem os perdedores).
Os dois times saíram de campo, foram-se os protagonistas e quase toda a plateia.
Filhos e netos de espectadores inconformados com o placar adverso seguem adiando o apito final.
A Revolução de 1964 (golpe militar, corrigem os perdedores) não consegue repousar nos livros de História.
No Brasil, o passado não passa.
Naqueles idos de março, eu tinha 14 anos e acabara de fundar, em companhia de quatro colegas da quarta série ginasial, a Frente Nacionalista Taquaritinguense.
Consumada a queda do presidente João Goulart, combati os vitoriosos nas páginas de um diário interrompido em maio, ao compreender o que havia acontecido.
Inimigos divididos em dois conglomerados político-militares apostaram corrida para ver quem dava o golpe primeiro.
Ganhou a aliança conservadora, apoiada pela maioria das Forças Armadas.
Os cérebros em bom estado deviam ser mais numerosos no agrupamento vencedor.
Mas nos dois lados sobravam imbecis.
Conselheiro de Jango, o general Assis Brasil dizia ao presidente, de meia em meia hora, que podia dormir em sossego.
O sono seria velado por um “dispositivo militar” invencível.
No lado contrário, o general Olimpio Mourão antecipou sabe-se lá por que o desencadeamento da insurreição marcada para o dia seguinte.
Se a História fosse justa, os dois seriam derrotados.
Assis Brasil nunca explicou por que suas tropas imaginárias se renderam sem disparar sequer uma bala de festim.
Mourão tampouco revelou o que lhe deu na telha para botar a soldadesca na estrada.
“Em matéria de política, sou uma vaca fardada”, definiu-se ao descobrir que nada lhe fora reservado na divisão do butim.
Também não tinha talento para livros de memórias.
Escreveu mais de mil páginas sublinhadas pelo humor involuntário.
Duas palavras resumem o forte impacto que lhe causava a passagem pela sala da empregada doméstica: “Que bunda!”, deslumbra-se.
O mesmo capítulo é encerrado pela delirante frase de efeito: “Vou dormir.
Sozinho, infelizmente, não posso salvar o Brasil!”, exclama de novo. Idiotas ou sagazes, triunfantes ou derrotados, todos os militares estrelados envolvidos nos barulhos de 1964 pertenciam à geração dos tenentes da década de 1920.
Com o triunfo da Revolução de 1930, os jovens oficiais conheceram os encantos da política e os prazeres do poder.
Animados com o que viram, transformaram o Exército no Partido Verde-Oliva e até os anos 60 estimularam a proliferação do anfíbio.
Os exemplares da espécie ora empunhavam o bastão de mando nos quartéis, ora expediam ordens alojados em cargos civis.
Enquanto acumulavam promoções que os levariam ao generalato, alternavam a farda e o terno comandando tropas, reinando em governos estaduais, aprendendo a arte da guerra em missões no exterior ou exercendo a Presidência da República.
Veja-se o caso do Marechal Cordeiro de Farias.
Antes de tornar-se ministro do Interior do governo de Castello Branco, que extinguiu a espécie, esse anfíbio gaúcho fora líder tenentista, governador de Pernambuco, interventor no Rio Grande do Sul e um dos comandantes da Força Expedicionária Brasileira na 2ª Guerra Mundial.
Os democratas de manifesto foram traídos pela ansiedade golpista
O Exército de 1964 não existe mais. Sumiram há tempos os representantes de sobrenomes indissociáveis da caserna — os irmãos Geisel, os irmãos Andrada Serpa.
De vez em quando ainda aparece um Etchegoyen, mas as marcas de nascença aristocrata se diluem no universo de sobrenomes comuns.
A oficialidade distribuída por postos de comando vai refletindo com crescente nitidez o mosaico étnico brasileiro, os oriundos de famílias pobres são bem mais numerosos.
Sobretudo, as Forças Armadas aprenderam a lição: melhor deixar a política para os políticos e ater-se ao papel estabelecido pela Constituição.
Ainda não sabem disso os esquerdistas brasucas, reiterou nesta semana o comportamento da tribo.
Com a cabeça estacionada no século passado, excitados pelo apoio do jornalismo indigente, os revolucionários de picadeiro se alvoroçaram com a troca da guarda no Ministério da Defesa e na chefia das Forças Armadas.
Em 48 horas, o general Fernando Azevedo entregou o gabinete ao general Braga Netto e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica foram substituídos.
Tremenda encrenca, excitaram-se parlamentares e colunistas.
Bolsonaro virou campeão de impopularidade no universo dos fardados, concordaram os jornais.
A democracia está em perigo, voltaram a berrar videntes em pânico com a iminência do que chamaram de “autogolpe”.
O ex-capitão politizou a relação com os generais para colocá-los sob o controle do Planalto, advertiram analistas com doutorado em nada.
Nenhum deles conseguiu disfarçar a torcida pela quartelada nascida para alcançar um objetivo só: a demissão do Genocida.
O impeachment ficou complicado?
Que viesse a ordem de despejo pessoal e intransferível: Fora, Bolsonaro.
Os democratas de manifesto foram traídos pela ansiedade golpista (e o latifúndio de papel inteiramente ocupado pela “crise militar” teve de ser parcialmente devolvido à pandemia de coronavírus).
Se não fossem portadores de cérebros baldios, se não sofressem de estrabismo ideológico, se trocassem a vadiagem pelo estudo da História recente do Brasil, saberiam que o profissionalismo imuniza militares contra rufiões de quartel.
Foi por isso que em 1999, no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, eles aceitaram serenamente a criação do Ministério da Defesa, que retirou dos comandantes das Forças Armadas o status de ministro e subordinou-os a um civil.
Por que haveriam de rejeitar a troca de um general por outro?
Se não denunciaram a prevalência de critérios políticos nas nomeações ocorridas nos 13 anos de governo do PT, por que dar atenção a hipócritas patológicos?
Lula e Dilma presentearam com o Ministério da Defesa, por exemplo, o vice-presidente José Alencar, que decerto ignorava a diferença entre uma bota de montaria e um coturno, o melífluo Celso Amorim, um dos parteiros da política externa da canalhice, o comunista de carteirinha Aldo Rebelo, que desde a infância luta para virar genro de algum capitalista selvagem, e o polivalente sindicalista Jaques Wagner, conhecido no Departamento de Propinas da Odebrecht pelo codinome Polo.
Fora o resto — resto que inclui prontuários ambulantes e nulidades incuráveis.
Comparado a esse bando, o general Braga Netto merece mais que o ministério.
Merece virar em vida estátua equestre, inaugurada ao som de tambores e clarins.
Revista Oeste
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