por Branca Nunes
Reportagem da Agência Pública detalha episódios de violência sexual contra crianças e adolescentes protagonizados pelo fundador da Casas Bahia
Sobrevivente de um campo de concentração nazista, Samuel Klein emigrou para o Brasil e tornou-se um dos empresários mais bem-sucedidos do país, dono de uma rede de lojas com centenas de filiais espalhadas por todo o território nacional. Neste 15 de abril, uma reportagem da Agência Pública acrescentou uma nova palavra à biografia do fundador da Casas Bahia, falecido em 2014: pedofilia.
Assinada por Ciro Barros, Clarissa Levy, Mariama Correia, Rute Pina, Thiago Domenici e Andrea DiP, a reportagem da Pública apresenta depoimentos de supostas vítimas, ex-funcionários, advogados e vizinhos de Samuel Klein. Ao todo, 35 pessoas foram ouvidas. A Pública informou também ter consultado sete processos cíveis e criminais em que mulheres denunciam Samuel por abusos sexuais, quatro processos em que outras afirmam ter sido vítimas e pedem indenização por danos morais, além de oito processos, arquivados em sigilo, com alegações de abusos sexuais contra o empresário. Atualmente, existe apenas uma ação contra Samuel Klein em discussão no Supremo Tribunal de Justiça.
Recortes desses documentos ilustram a matéria ao lado de fotos de Klein com garotas vestidas em trajes de banho, imagens dos vários imóveis do patriarca nos quais teriam acontecido os supostos abusos e um vídeo de 1994. Na gravação, Klein aparece numa festa em comemoração ao seu aniversário junto com dezenas de meninas que o abraçam, dançam, tomam banho de piscina e gritam em coro: “Eô, Eô, o Samuca é um terror! Eô, Eô, o Samuca é um terror!”. Uma mulher, também de biquíni, pergunta o que ele está achando daquelas “gatinhas maravilhosas”. “Não tem palavras”, responde o empresário. “Que eles me deem muitos anos de vida para eu servi-las com satisfação.”
Segundo a reportagem, Samuel Klein oferecia dinheiro e presentes a garotas, na grande maioria menores de idade e de classes sociais mais baixas, que eram submetidas a situações cada vez mais graves de exploração sexual. “Após os contatos na sede, eram chamadas para participar de festas e orgias em imóveis do empresário”, descreve o texto. “O esquema contava com funcionários próximos de Samuel, que organizavam as viagens e festas e faziam pagamentos às meninas e familiares, inclusive por meio de produtos da Casas Bahia.”
O silêncio da imprensa
Com faturamento médio anual de R$ 30 bilhões, a Via Varejo, conglomerado do qual a Casas Bahia faz parte, é um dos maiores anunciantes da mídia brasileira. Embora a família Klein não seja mais a proprietária da rede, a imagem do patriarca continua associada à marca. Os veículos de comunicação tradicionais não repercutiram a reportagem da Agência Pública.
“Ao contrário do que costuma acontecer em casos dessa dimensão, a grande imprensa não investigou, não repercutiu nem republicou o material”, observou Flávia Lima, crítica de mídia da Folha de S.Paulo, em sua coluna de 24 de abril. “No caso da Folha, a postura chama ainda mais a atenção porque o jornal tem uma parceria com a Agência Pública e, se quisesse, poderia ter publicado a íntegra da reportagem”, escreveu a ombudsman.
“Dos grandes veículos, incluindo canais de televisão, ninguém falou do assunto até o momento [23 de abril] na sua cobertura diária”, disse Thiago Domenici, editor e repórter da Agência Pública, a Flávia Lima. Apenas nesta sexta-feira, 30 de abril, o portal UOL deu destaque ao caso. Domenici contou ainda que a apuração durou quatro meses e começou a partir das denúncias que envolvem Saul Klein, o filho de Samuel investigado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo por aliciamento e estupro de cerca de 30 mulheres.
Um dos casos de violência sexual relatados pela Pública é o de Karina Lopes Carvalhal, hoje com 40 anos. Aos 9 anos, ela soube pelas irmãs que um grande empresário de São Caetano do Sul (SP), sua cidade natal, dava dinheiro e presentes a menores de idade que fossem à sede da empresa, na Avenida Conde Francisco Matarazzo, número 100. Animada com a possibilidade de conseguir um tênis novo, ela topou.
A história de Karina e de dezenas de outras mulheres é descrita em detalhes pela Pública. Confira trechos da reportagem:
Karina subiu até o andar da presidência e lembra que esperou algum tempo até ser chamada ao escritório particular do dono. Quando ele surgiu, ela ficou surpresa ao ver um senhor de idade já na casa dos 70 anos, que pediu que ela se aproximasse. “Minha irmã tinha me dito: ‘Ká, não se assuste porque ele vai te dar um beijinho’. Mas ele me cumprimentou e já passou a mão nos meus peitos. Ele dizia: ‘Ah, que moça bonita. Muito linda’”, ela relembra, imitando o sotaque polonês do empresário Samuel Klein, fundador da Casas Bahia. Ao sair dali, ela conta que sentiu alívio, levando consigo uma quantia em dinheiro e um tênis da marca Bical. Era 1989.
Mas nas novas visitas, de acordo com Karina, as situações de exploração sexual ganharam escala e viraram rotina. “A segunda vez, ele já me levou pro quartinho.” Ela conta que o empresário mantinha um quarto anexo ao seu escritório, onde havia uma cama hospitalar. Era ali que ocorriam os abusos. Ainda segundo Karina, foi ali que ela foi violentada sexualmente pela primeira vez, aos 9 anos.
Renata contou à polícia que em outubro de 2008 foi à casa de praia do empresário em Angra dos Reis. Ela teria viajado com Samuel e seu piloto particular no helicóptero do empresário. À noite, foi chamada para uma conversa no chalé que o fundador da Casas Bahia ocupava. Do lado de fora havia aproximadamente 12 seguranças. Dentro, um enfermeiro teria acabado de aplicar uma injeção de Viagra no empresário, que na época tinha 85 anos.
No depoimento, Renata disse que Samuel fez várias promessas de ajuda financeira, incluindo estudos em uma boa escola, apartamento e carro, em troca de sexo. Ela teria resistido. “Ele me pegou à força, rasgou minha roupa e me violentou. Não adiantava gritar. Eu chorei e fiquei sangrando direto na quarta e na quinta-feira”, diz um trecho do depoimento.
Segundo os relatos, após um primeiro contato, que frequentemente já incluía abusos sexuais, elas eram selecionadas por Samuel para participar de festas do empresário em imóveis de sua propriedade. Aparecem nos relatos como palco dos crimes sexuais apartamentos no edifício Universo Palace, em Santos (SP), e na Ilha Porchat, em São Vicente (SP). Também as casas de veraneio no Guarujá (SP) e em Angra dos Reis, além de seu imóvel num condomínio de Alphaville, em Barueri (SP).
Alguns funcionários próximos teriam participado ativamente. Segundo os relatos das mulheres e de funcionários, além dos registros nas ações judiciais, esse staff do empresário fazia a organização das viagens, recrutando menores de idade e mulheres adultas, levando cestas básicas às famílias e dividindo os grupos para transportá-las aos imóveis de Samuel.
“Josilene [Nota da Redação da Oeste: a fonte preferiu manter-se anônima], que foi gerente numa loja da Casas Bahia na Vila Diva, zona leste de São Paulo, entre 2005 e 2008, contou à Pública que tanto Samuel quanto Saul Klein usavam o caixa das lojas como parte dos pagamentos dessas meninas e mulheres. “De manhã tocava o telefone: ‘Aqui é da parte do dr. Samuel ou do dr. Saul, e precisa separar tanto pro final do dia’. Então a gente ia no caixa, conversava, e as caixas iam separando o que entrava em dinheiro. E no final as meninas passavam e retiravam os valores.”
Também a ex-funcionária Suzana Morcelli, que processou a empresa, em que trabalhou entre 2004 e 2009, confirma os pagamentos. “As garotas iam às lojas e pegavam os pagamentos tanto em dinheiro vivo quanto em mercadoria. E não eram valores pequenos. Lembro de uma que falou: ‘O que vocês demoram o mês todo para receber, nós ganhamos em uma hora‘’’, diz em entrevista à Pública. Josilene confirma. “Na loja da Vila Diva, elas chegavam a receber R$ 3 mil cada uma.”
A Pública apurou também que o empresário teria a seu serviço duas agenciadoras na Baixada Santista. Uma delas é Káthia Lemos, apontada por ao menos seis mulheres como uma “aliciadora de meninas” do empresário.
Em conversa com a reportagem, a comerciante, de 53 anos, conta que tinha 13 quando começou a trabalhar para Samuel Klein, fazendo serviços diversos. Káthia negou que fizesse agenciamento de mulheres e meninas para “o rei do varejo”. Disse que sua função era oposta: “despistar as moças” que ele não queria mais encontrar, mas que insistiam em participar dos encontros em troca de dinheiro. “Se deixasse, elas invadiam a casa dele. Era necessidade, né? Elas precisavam.”
A ex-funcionária de Samuel disse […] “Não tinha menor de idade. Algumas mentiam, dizendo ter 18 anos para agradá-lo. Era a fantasia dele. Ele gostava de meninas novas. Tinha uma menina menor de idade que ia com a mãe, mas ele nunca tocou a mão nela.”
Mas Káthia admitiu que o empresário tentou fazer sexo com ela própria quando ainda era adolescente. “Eu nunca deitei com ele. Um dia ele tentou, mas falei: ‘Você nunca mais faz isso‘. Eu tinha de 13 para 14 anos e já trabalhava pra ele. E ele nunca mais tentou nada.”
Diversos relatos obtidos pela reportagem apontam que taxistas, motoristas e as próprias mulheres também faziam parte da engrenagem de exploração sexual sistemática de adolescentes pelo fundador da Casas Bahia. Muitas mulheres relatam que ele tinha preferência por virgens e havia um estímulo financeiro para quem as trouxesse. “Quando ele perdia o interesse, a gente levava uma menina mais nova pra encantar mais ele, entendeu? Ele dava mais dinheiro pra gente, poderia pegar mais coisa: um armário, uma TV. Aí a gente estourava”, afirma Karina Carvalhal.
Francielle Wolff Reis continuou frequentando o escritório do empresário. Cinco vezes, viajou com ele e outras adolescentes para Angra dos Reis. Nessas viagens, segundo seu relato, as meninas eram submetidas a uma rotina de violências sexuais no iate em alto-mar ou no chalé da enorme propriedade cercada por seguranças armados. A Pública teve acesso a fotografias que revelam a presença de Francielle no iate que Samuel mantinha em Angra.
Samuel repetia com a adolescente o mesmo padrão relatado por outras mulheres. Além do dinheiro, dava cupons para a retirada de produtos, como sugerem duas notas fiscais da Casas Bahia que, expedidas em nome de Francielle, somavam o valor de R$ 1.154, em maio de 2009, quando a menina tinha 15 anos.
Embora fosse maior de idade, Cláudia conta que foi orientada a dizer que tinha 17 para 18 anos para atender “o estilo de Samuel, que gostava mais de menininha”. Cláudia confirma que o empresário mantinha relações sexuais com adolescentes e crianças. “Ele era pedófilo, agia como um. Gostava de meninas com o corpo menos evoluído, que era meu caso. Então ele gostou de mim. A gente tinha que ficar mentindo porque ele gostava disso.”
Na Justiça, nenhum procedimento para a responsabilização de Samuel Klein por abusos contra crianças e adolescentes prosperou. Fechar acordos judiciais e evitar citação em ações em curso foi apontado como táticas da defesa do empresário para evitar o andamento de processos.
Um advogado ouvido pela reportagem afirmou ter fechado um acordo judicial, com pacto de confidencialidade, com seis mulheres que alegaram abusos de Klein, todas menores de idade na época dos fatos. Segundo o advogado, que falou sob sigilo para não desrespeitar os termos da confidencialidade, o acordo foi exitoso porque as vítimas apresentaram fotografias e vídeos que comprovaram a situação. Ele classificou o material apresentado como “incontestável”.
Além desse acordo, outros similares foram feitos, registrados na Justiça ou no âmbito extrajudicial. Em 2010, um acordo entre Vanessa Carvalhal, Karina Carvalhal e outras duas denunciantes foi firmado. Segundo as irmãs ouvidas pela reportagem, cada uma recebeu cerca de R$ 150 mil. A Pública teve acesso a documentos que indicam a veracidade do acordo.
As constantes visitas das adolescentes aos locais escolhidos por Samuel Klein para festas e encontros íntimos geraram dependência financeira e, segundo elas, também dependência psicológica. “Parece que a gente tinha a obrigação de fazer [atos sexuais] porque ele tinha dado dinheiro no dia anterior”, disse Vanessa Carvalhal em um dos trechos da reportagem. De acordo com a Pública, a maioria das entrevistadas relata ter participado por anos de festas e sessões de exploração sexual.
Independentemente do “consentimento” ou não das vítimas, as relações afetivo-sexuais entre adultos e menores de idade são proibidas expressamente pelo Código Penal Brasileiro. No artigo 217, está escrito que praticar sexo com menores de 14 anos de idade é crime de estupro punido com pena de reclusão de oito a quinze anos. “Se a vítima tiver entre 14 e 18 anos e o ato envolver algum tipo de troca — que pode ser dinheiro ou outra recompensa, como um brinquedo, uma roupa ou até comida —, ficará caracterizado o crime de exploração sexual de criança ou adolescente”, lembrou a reportagem da Pública. Nesses casos, as penas vão de quatro a dez anos de prisão.
Em resposta à Pública, a Via Varejo esclareceu que a família Klein “nunca exerceu qualquer papel de controle na holding constituída em 2011 para gerir as marcas Casas Bahia, Pontofrio, Extra.com.br e Bartira”, relatou a reportagem. “A família Klein lamentou que o patriarca não esteja vivo para se defender das acusações mencionadas.” Sobre dois processos em andamento, a família disse que correm em segredo de Justiça e que as decisões serão acatadas.
Revista Oeste
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2021/04/as-acusacoes-postumas-contra-samuel.html
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