editorial da Gazeta do Povo
“Na Itália, a corrupção conquistou a impunidade. Aqui, entre nós, ela quer vingança. Quer ir atrás dos procuradores e juízes que ousaram enfrentá-la. Para que ninguém nunca mais tenha a coragem de fazê-lo. No Brasil, hoje, temos os que não querem ser punidos, o que é um sentimento humano e compreensível. Mas temos um lote muito pior, dos que não querem ficar honestos nem daqui para a frente, e que gostariam que tudo continuasse como sempre foi.”
São palavras históricas do ministro Luís Roberto Barroso, ditas durante a sessão desta quinta-feira do Supremo Tribunal Federal. Elas descrevem à exatidão o que aconteceu, está acontecendo e ainda acontecerá no Brasil: a reação dos corruptores e corruptos à maior e (até quinta-feira, ao menos) mais bem-sucedida operação de combate à ladroagem da história do país.
Em uma sessão que terminou com novas demonstrações de destempero de Gilmar Mendes, forçando seu encerramento sem que dois votos – o do presidente Luiz Fux e do decano Marco Aurélio –, fossem proferidos, o STF formou maioria para decidir que o habeas corpus julgado pela Segunda Turma e que resultou na declaração de suspeição do ex-juiz Sergio Moro no caso do tríplex do Guarujá não havia perdido seu objeto, isso apesar de o mesmo plenário ter confirmado, na semana anterior, a nulidade de todas as ações contra o ex-presidente Lula em Curitiba.
Se a decisão da semana passada já jogava de volta à estaca zero todos os processos, a manutenção da suspeição piora a situação, pois nem mesmo as provas colhidas pela força-tarefa e aceitas por Moro poderão ser usadas no novo julgamento. A impunidade, como se diz no jargão futebolístico, colocou as duas mãos na taça.
Queiram ou não os ministros, hoje, objetivamente, o Supremo Tribunal Federal é o principal promotor da impunidade em crimes de colarinho branco no Brasil
Mas o que ocorreu nesta quinta-feira não é apenas sobre Lula – antes fosse. A decisão não apaga todo o “caminhão de provas”, na expressão do procurador Roberto Livianu, que ligam o ex-presidente à pilhagem da Petrobras. Elas podem não ser novamente aceitas em um tribunal, Lula provavelmente jamais voltará a pagar pelo que fez, mas a verdade dos fatos está posta para qualquer um que não esteja cego pela ideologia ou pela adoração à alma mais mentirosa do país.
O que vem ocorrendo no Supremo – não apenas ontem, mas ao longo de meses – tem uma dimensão histórica que diz muito sobre as chances de o combate à corrupção no Brasil prosperar ou fracassar.
Nunca – reforçamos: nunca – será demais repetir o que a Operação Lava Jato fez pelo Brasil. Ela desmontou o que foi o maior esquema de corrupção da história do país e um autêntico ataque à democracia brasileira, em que, na sequência do mensalão, um governo se aliou a outros partidos e empreiteiras para pilhar estatais e, assim, perpetuar seu projeto de poder.
Os corruptos haviam aprendido com o escândalo anterior, e desta vez montaram uma rede muito mais intrincada, com infinitos desdobramentos. Isso não desanimou os investigadores, que, com esforço e dedicação incansáveis ao longo de anos a fio, montaram o quebra-cabeça, encaixando até mesmo as peças principais, aquelas mesmas que faltaram em investigações anteriores, não obstante os esforços de outros agentes da lei que vieram antes da Lava Jato.
Tudo feito com rigor máximo, mas sempre com todos os cuidados para não se cruzar a linha que separa a legalidade da ilegalidade, inclusive nos casos em que a legislação deixava mais espaço de interpretação a investigadores e julgadores.
Pois o que o Supremo – ou ao menos a maioria de seus ministros, já que sempre houve aqueles bastante duros com a ladroagem – disse nesta quinta-feira, e vem dizendo já há algum tempo, é que todo o rigor, toda a dedicação, todo o cuidado para cumprir a lei, podem até colocar peixes pequenos atrás das grades, mas quando se trata dos mais poderosos de nada servem. O cumprimento dos prazos processuais previstos em lei será transformado em cerceamento de defesa.
Atos e decisões que despertam indignação entre os que discordam do rigor no combate à corrupção, mas que ocorreram dentro da legalidade e daquela margem de discricionariedade à qual nos referidos, serão distorcidos e transformados em “abuso”, “excesso” ou parcialidade, vontade de punir. A corte passará a ver incompetências onde antes não via absolutamente nada de errado.
Queiram ou não os ministros (pois não nos cabe julgar as intenções de cada um), o fato é que, hoje, objetivamente, o Supremo Tribunal Federal é o principal promotor da impunidade em crimes de colarinho branco no Brasil.
Não pune e não deixa punir. Deixa parados os processos da ladroagem com foro privilegiado, e desfaz o trabalho dos que investigaram e julgaram a ladroagem sem foro privilegiado.
A próxima etapa, como afirmou Barroso, é a da vingança. A bancada da impunidade no Congresso Nacional aplainou o caminho aprovando a absurda Lei de Abuso de Autoridade, a lei da retaliação dos investigados, réus e condenados contra seus investigadores e juízes. É questão de tempo até que se tente enquadrar Sergio Moro nela.
Afinal, estamos no país em que um presidente de tribunal superior usa “evidências” sem autenticidade comprovada e obtidas por meio de crime para instaurar inquérito contra procuradores da Lava Jato, atropelando a Constituição.
Em um ambiente desses, que incentivo podem ter policiais, procuradores, promotores e juízes para se dedicar ao combate à corrupção? Que incentivo terão jovens que sonham com essas carreiras para poder fazer a diferença pelo bem do Brasil? Como dissemos, o que está ocorrendo não é apenas sobre Lula, nem mesmo apenas sobre a Lava Jato. É sobre um sistema de Justiça feito para funcionar quando convém, mas que tem brechas suficientes para frear tudo o que não convém.
Em uma cena célebre da série O Mecanismo, um corrupto na cadeia recebe uma ligação telefônica e, logo em seguida, grita a outros presos: “Vai todo mundo embora! Foi pro Supremo”, despertando uma onda de regozijo geral entre os ladrões da ficção.
Nesta quinta-feira, riram os corruptos da vida real e seus apoiadores. Choraram os brasileiros honestos, os que não têm bandido de estimação, os que anseiam por justiça. Até quando será assim? Há conserto possível? Disso trataremos em breve.
Gazeta do Povo
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