Guilherme Fiuza
Manezim é um cara legal.
Ninguém tem nada contra ele.
Na escola, quando virou moda usar tênis sem cadarço, Manezim jogou fora os cadarços do seu tênis.
Quando a moda passou, ele pediu a sua mãe um tênis novo.
Foi roqueiro e ficou contra o rock’n’roll, na onda disco virou DJ.
Cortou o cabelo na new wave, deixou crescer quando a nova onda ficou velha, cortou de novo quando todo mundo cortou de novo, fez tatuagem, apagou tatuagem, fez de novo por cima, foi contra o BBB (alienação), foi a favor do BBB (inclusão), disse que violência não leva a nada, disse que black bloc quebrando tudo é revolução, praguejou contra a geração-saúde e venerou churrasco de melancia.
Manezim afirma que está há um ano em casa.
Diz que está feliz e não sente falta de nada. Pelo zoom ele mostra sua empatia aos amigos quarentenados.
Mostra também seus cabelos compridos para provar que não foi ao salão.
Um amigo dele apareceu no zoom de cabelo curto e tentou explicar que foi sua irmã que cortou, mas não adiantou.
Caiu em desgraça. No “call” seguinte (pronuncia-se “cóu”) a janelinha do amigo de cabelo cortado simplesmente não apareceu.
Foi cancelado.
Manezim entrou em pânico.
Ele topa tudo, até viver para sempre num porão mofado, menos ser cancelado.
Tem pesadelos quase diários com seus coleguinhas chamando-o de negacionista e bloqueando-o nas redes.
Está deixando uma franja por cima dos olhos para que não haja sombra de dúvidas.
Sombra, só a da quarentena.
Alguns amigos ricos do Manezim apareceram no zoom meio bronzeados, o que chegou a causar certo mal-estar.
Mas tudo logo foi esclarecido.
Eles disseram que pegaram sol limpando suas piscinas, em gesto de empatia para com seus caseiros.
Teve um que foi fotografado a bordo de um iate no Caribe, mas explicou que estava lá para salvar vidas e ficou tudo bem.
O pessoal tem uma tolerância maior com alguns coleguinhas – como o do Caribe – porque são pessoas especialmente generosas: além de muita grana, têm ótimos advogados, mandam nos jornalistas certos, arranjam oportunidades para os amigos em qualquer terreno e ainda dão as melhores festas.
Todos no zoom aplaudiram o coleguinha generoso que foi salvar vidas no Caribe.
Manezim tem personalidade. Achava política um saco quando era para achar política um saco. Hoje ele é altamente politizado.
Diz que um dos dias mais felizes da sua vida foi quando surgiu o projeto de lei obrigando fabricantes de produtos de limpeza a inscrever nas embalagens que as mulheres e os homens são iguais perante o lar.
“Isso muda o mundo”, pensou Manezim, valendo-se do seu cabedal filosófico de Rock in Rio.
Se deixarem ele falar no próximo cóu, vai propor uma lei tirando do alfabeto as letras “a” e “o”.
Assim não haverá mais risco de os negacionistas insistirem no crime de separar, segregar e discriminar tudo entre masculino e feminino, o que não passa de uma invenção fascista para oprimir as minorias, que no fundo são a maioria, como diria Dilma Rousseff, a musa dos intelectuais.
Depois de comer um bom sanduba trazido pelo iFood, Manezim vai dar um passeio. Calma, passeio pela internet!
Ele só sai do apartamento (com quatro máscaras) se o cara do iFood não puder subir.
E filosofa: as entregas a domicílio são a invenção do século, tendo como único porém os entregadores.
Muitos deles para chegar até as motos do patrão se metem em ônibus lotados, o que configura um péssimo comportamento social.
Mas o Manezim não tem nada com isso, ele já toma conta de muita coisa.
E agora, passando do iFood para o iPhone, ele dará o seu passeio digestivo pela web procurando alguém para dedurar.
Sempre tem um herege ao ar livre para ser patrulhado e fuzilado pelos cliques empáticos do Manezim.
Depois ele vai dormir exausto de salvar tantas vidas. A única que jamais salvará é a dele.
Gazeta do Povo
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