por Jonas Madureira
O mundo continua padecendo até a morte, e, ainda assim, as sombras de seu ocaso nos afligem. Em meio a ruínas, é possível abrir os olhos e enxergar o Verbo
Vivemos em um mundo envelhecido, que respira ofegante e é turvo da vista. Ele é enfermo e estamos cientes disso. Mesmo assim sua morte é aterradora.
Nunca nos acostumamos com ela. Apesar de o enredo ser o mesmo há séculos, a derradeira pulsação ainda nos espanta. Mas até quando? Em dezembro de 410, no meio do Advento, Santo Agostinho teve o espanto do espanto.
Explico.
Ele não se espantou com os últimos dias do mundo, mas com o espanto dos homens, inclusive de cristãos, diante do rigor mortis. A situação era desoladora.
O coração do mundo estava gravemente enfermo. Roma tinha sido invadida, ferida e humilhada pelos bárbaros. Durante três dias, edifícios notáveis ruíram em chamas, a Basílica Júlia fora devastada, igrejas foram pilhadas, as mais terríveis violações e mortes fizeram o mundo sangrar até a morte.
Ninguém podia acreditar no que os olhos viam. O espanto era justificável, pois o moribundo da vez era a Roma Aeterna. Com um nome desses, quem imaginaria sua morte?
No magnífico Sermão 81[2], pregado às vésperas do Natal, Santo Agostinho dizia a seus ouvintes: “Tu te espantas que o mundo chegue ao fim? Mais vale que te espantes de vê-lo chegar a idade tão avançada. O mundo é como um homem: nasce, cresce e morre”.
As palavras do bispo são atuais. O mundo continua padecendo até a morte, e, ainda assim, as sombras de seu ocaso nos afligem.
Recentemente, li um romance de Jérôme Ferrari que ele chamou de O Sermão sobre a Queda de Roma[3].Trata-se da história de dois amigos de infância — Libero e Matthieu — que abandonaram Paris e resolveram abrir um bar na Córsega, uma ilha do Mediterrâneo pertencente à França.
Eles cresceram nessa ilha, mas, quando jovens, mudaram-se para Paris.
Detestaram-na.
Depois de um longo período de incertezas, abandonaram os estudos e trocaram a metrópole das luzes pela ilha dos tempos de infância. Como se isso não fosse o bastante para evidenciar a esquisitice, ambos eram filósofos.
Enquanto Libero se concentrava no De Excidio Urbis, de Santo Agostinho, Matthieu quebrava a cabeça com a Teodiceia, de Leibniz. Libero “acreditava na eternidade das coisas eternas, em sua nobreza inalterável”; Matthieu “se perdia nos labirintos vertiginosos do entendimento divino, à sombra da inconcebível pirâmide dos mundos possíveis multiplicada ao infinito”.
Resumo da ópera.
Libero abandonou a filosofia por causa do tédio, e Matthieu, por seu turno, afundou-se em um amor não correspondido. Assim, ambos, frustrados com seus mundos, decidiram que a felicidade não estaria nem na filosofia nem em um grande amor, mas em um bar. Pois bem, eles decidiram abrir um bar.
Acreditavam que seria mais fácil administrar um negócio do que tentar entender o mundo. Todavia, ao fazerem de um bar um microcosmo, descobriram que manter um bar vivo é tão difícil como tentar evitar a morte do mundo.
Não há sossego. O mundo onde habitamos é edificado sobre o chão da precariedade. Ele vai tombar. É uma questão de tempo. No entanto, mesmo cientes disso, fazemos de tudo para mantê-lo vivo. Ignoramos, solenemente, o fato de que ele não viverá para sempre.
Em relação à eternidade, em nada o mundo distingue-se daquela bolha de sabão soprada pelo garotinho retratado por John Everett Millais. Na pintura, o garotinho observa febrilmente a esfera mágica que surge logo depois de ter soprado o brinquedo.
Ela desliza ao vento como uma bailarina russa.
A criança, por sua vez, apenas espera pelo momento em que a bolha rebentará nos ares. A bolha de sabão é uma excelente metáfora para a brevidade do mundo. Não digo meramente o mundo como planeta, embora a metáfora sirva também para o rotundo globo.
Refiro-me, em especial, aos mundos vividos, o mundo visto como um “dentro” onde moramos. Você já reparou que nunca vivemos fora?
Sempre estamos dentro de alguma coisa.
Fomos concebidos em uma bolha que estava dentro de outra bolha e assim por diante.
De bolha em bolha, vivemos nossa vida: da bolha do útero à bolha da família; da bolha da família à bolha da igreja, da escola, do trabalho, da cidade, do país, do mundo, do universo…
Sempre estamos dentro de uma bolha, nunca fora. Quando acreditamos que furamos a bolha e que, finalmente, estamos do lado de fora, não demoramos muito para perceber que, na verdade, estamos dentro de outra bolha. Sempre estamos envolvidos em algo.
O homem ridículo de Dostoiévski estava ciente de que a razão não consola ninguém
O
Diante dessa inescapável condição, Dostoiévski sugeriu duas reações: o deboche ou a pregação. Em Memórias do Subsolo[4], o homem do subsolo reagiu assim: “Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. […] Pode o mundo cair em pedaços desde que eu possa tomar meu chá todos os dias”.
Ora, isso não é um mero deboche. É um deboche niilista. A razão não nos consola. Ela nos obriga a enxergar o mundo como algo sem sentido, que sempre envelhece e morre. Em vez de lutar por um mundo povoado de significados, o niilista, consciente da brevidade da vida, nega-se a buscar o consolo na religião, na política, no trabalho ou em qualquer outra coisa que possa dar sentido à vida. Seu único consolo é a maximização da autossatisfação. Não há espaço para a fé. E, onde não há fé, a morte é intransponível.
Por outro lado, em O Sonho de um Homem Ridículo[5], antes de tentar o suicídio por causa do mundo em pedaços, o homem ridículo, dominado pelo sono, dorme ridículo, mas acorda pregador. Isso mesmo.
Ele acorda pregando: “Nunca antes tinha adormecido assim na minha poltrona. Foi então que, de repente, enquanto eu estava ali parado e voltava a mim — de repente relampejou à minha frente o meu revólver, pronto, engatilhado — mas num instante o empurrei para longe de mim! Ah, agora, a vida e a vida! Levantei as mãos para o alto e evoquei a verdade; nem cheguei a fazer isso, e comecei a chorar; um êxtase desmedido elevava todo o meu ser. Sim, a vida e a pregação! Naquele momento decidi que iria pregar, e é claro pelo resto da minha vida! Eu vou pregar, eu quero pregar — o quê? A verdade, pois eu a vi, eu a vi com os meus próprios olhos, eu vi toda a sua glória! E desde então é que estou pregando! […] Eu vi a verdade — não é que a tenha inventado com a mente, eu vi, vi, e sua imagem viva me encheu a alma para sempre. Eu a vi numa plenitude tão perfeita que não posso acreditar que ela não possa existir entre os homens”.
O homem ridículo já era ridículo antes mesmo de tornar-se um pregador. Antes de ver a verdade, ele já sabia que é uma estupidez sacrificar a razão em qualquer hipótese, mas, ao mesmo tempo, estava ciente de que a razão não consola ninguém.
O consolo de que o homem precisa quando o mundo desaba diante dele jamais será um conceito ou uma teoria. Será antes de tudo algo que o toca de forma última. A fé não somente livra da morte homens ridículos. Ela abre seus olhos para que possam ver algo maior do que eles mesmos. Em geral, as liturgias do Advento levam-nos a refletir sobre a ruína de um mundo mergulhado em densas trevas e que aguarda a vinda de Cristo.
O mundo vai morrer, mas sua morte não dará a última palavra.
A última palavra está na boca do maior pregador de todos os tempos. E não me refiro ao homem ridículo, mas à manjedoura que embalou o Verbo Encarnado. Ela é a inspiração de todos os pregadores. Sempre que sobe ao púlpito, o pregador tem diante de si uma única missão: tornar-se uma manjedoura e desaparecer para que o que realmente importa permaneça à vista de todos.
Se as pessoas, em suas densas trevas, não contemplarem o Verbo, elas seguirão sua vida entrevadas, como se nada tivesse acontecido.
Mas se, em meio a ruínas, seus olhos se abrirem e elas enxergarem o Verbo, então elas não mais se espantarão com a velhice do mundo mas terão suas forças renovadas.
No Sermão 81, Santo Agostinho segue os passos da manjedoura e prega a todos os que ainda se espantam com a morte do mundo: “Cristo diz: o mundo vai partindo, o mundo está velho, o mundo sucumbe, o mundo provecto respira ofegante, mas não tenhas medo: tua juventude há de renovar-se como a de uma águia”.
[1] T. S. Eliot, “Coros de A Rocha”, in: Obra Completa: Poesia (São Paulo: Arx, 2004), vol. 1.
[2] Agostinho de Hipona, O De Excidio Urbis e Outros Sermões sobre a Queda de Roma (São Paulo: Annablume, 2012).
[3] Jérôme Ferrari, O Sermão sobre a Queda de Roma (São Paulo: Editora 34, 2013).
[4] Fiódor Dostoiévski, Memórias do Subsolo (São Paulo: Editora 34, 2000).
[5] Fiódor Dostoiévski, Duas Narrativas Fantásticas: “A dócil” e “O sonho de um homem ridículo” (São Paulo: Editora 34, 2011).
Jonas Madureira, bacharel em filosofia pela PUC-SP, bacharel em teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre em filosofia pela PUC-SP e doutor em filosofia pela USP com estágio no Thomas-Institut, da Universidade de Colônia (Alemanha). Professor de filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie e pastor da Igreja Batista da Palavra, em São Paulo
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