Jornalista Andrade Junior

sábado, 2 de maio de 2020

RELEMBRANDO CAMUS

por Fernando Fabbrini

Se, por um milagre, os males do mundo desaparecessem da noite pro dia, muitos jornalistas, apresentadores e comentaristas perderiam seu empregos
Outro dia, presenciei um ligeiro bate-boca entre vizinhas, certamente sintoma de estresse do isolamento social. Uma senhora responsabilizava a moça do prédio ao lado pela presença de um pequeno rato que transitava impune. Por conta própria, atribuía residência do roedor à casa alheia. Achei graça; suponho que ratos não têm CEP nem domicílio fixo. Moram nos esgotos, no abrigo das sarjetas e circulam por todo o bairro em busca de comida. Aliás, cardápio esse em alta; aumentaram as marmitas nas calçadas com restos de arroz e feijão - culpa da pandemia, da coleta de lixo alterada e, sobretudo, dos moradores porcalhões.
Ratos e pestes fazem-nos lembrar Albert Camus. Profundo observador da alma humana, conta num de seus livros que mendigos da capital argelina colocavam excremento nas feridas do corpo para que estas piorassem. Com isso, ganhariam a disputa por maiores esmolas dos passantes. Exibiam suas mazelas purulentas aos mendigos próximos, quase vaidosos, como se dissessem:
- Minha perna está pior que a sua! Vou ganhar mais esmolas...
Não há limites para a raça humana quando ela despenca pelo abismo da dignidade. Porém, não precisamos ir tão longe na distância geográfica e no tempo de Camus. Aqui mesmo, guardadas as devidas proporções, vemos expostas as feridas – pioradas de propósito - que nos causam repugnância natural; feridas em busca de exibição e de algum tipo de ganho.
Já não bastavam as notícias rebuscadas sobre crimes hediondos, violência, terrores diversos. Com a pandemia, a comunicação foi além; transformou-se numa via aberta de pânico generalizado. Se, por um milagre, os males do mundo desaparecessem da noite pro dia, muitos jornalistas, apresentadores e comentaristas perderiam seu empregos na hora – já que só falam nisso; vivem disso; parecem gostar disso. Quanto pior o drama pessoal do entrevistado, mais terrível, mais bizarro, mais sucesso do programa escandaloso.
Os noticiários já foram mais discretos e respeitosos com a dor alheia. Um código de ética não-explícito do jornalismo, baseado na compaixão e solidariedade humana, norteava as pautas e as edições. Essa fronteira sutil foi violada recentemente – e o Brasil deve ter sido um dos precursores da modalidade, de olho na preferência do estranho segmento de público sedento de sangue, sofrimento e sordidez.
As “reconstituições de crimes”, revividas através de sofisticados recursos de computação gráfica são outros exemplos. Vemos ali vítimas e seus assassinos representados digitalmente, segurando armas e disparando tiros na posição presumida. Ora: à exceção dos peritos criminais, advogados e juízes, a quem mais interessaria saber desses detalhes? De que servem tais representações para a família confinada assistindo ao telejornal, olhos arregalados?
Veio a internet – e todos viraram repórteres e idiotas, segundo Umberto Eco. Há um prazer mórbido em divulgar e compartilhar imagens chocantes do que há de mais degradante por aí. De que servem a nós cenas de crueldades com cachorrinhos? Espancamentos de bandidos? Saber que o estoque de caixões em tal cidade está se esgotando e – que novidade! - já se fazem agora sepultamentos noturnos? Ou contabilizar quantos morreram ao final do dia, desprezando sempre o número de curados?
Ao mesmo tempo, como se a vida estivesse absolutamente normal no planeta, a mídia dedicou farto espaço àquele grupo de rapazes e moças confinados num clima de narcisismo, intriga e promiscuidade chique, falando besteiras para as câmeras e os telespectadores. Falta do que fazer? Não seja por isso: emissora e patrocinadores deveriam providenciar máquinas de costura, carretéis e pano. Gastariam melhor seu tempo fabricando máscaras e aventais para doação, caladinhos e refletindo sobre a transitoriedade da vida – assunto interessante e cada vez mais essencial nos dias de hoje.









extraídadepuggina.org

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