Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Texto de Santo Agostinho criou a culpa cristã frente ao sexo -

CONTARDO CALLIGARIS FOLHA DE SP

Li um extraordinário ensaio de Stephen Greenblatt, na "New Yorker" de 19 de junho: "How St. Augustine Invented Sex", como santo Agostinho inventou o sexo.

Greenblatt é um autor de quem tento não perder nada, desde que li "The Swerve", de 2012 ("A Virada - O Nascimento do Mundo Moderno", Companhia das Letras —esgotado, como pode?).

"The Swerve", para mim, está na lista dos 200 livros que é necessário ter lido para não morrer idiota.

Enfim, no ensaio da "New Yorker", Greenblatt aponta nas "Confissões" de santo Agostinho (fim do século 4) a origem das dificuldades da cultura cristã com os prazeres da carne.

O artigo está ligado ao novo livro de Greenblatt: "The Rise and Fall of Adam and Eve" (Norton, 2017), o surgimento e a queda de Adão e Eva, em que trata da aparição e eventual queda, na nossa cultura, do casal com o qual a Bíblia começa —sua história, suas imagens e sua inquietante exemplaridade.

Discute-se até hoje: há quem diga que eles são exemplo da miserável desobediência humana, e há quem diga que eles são os antepassados do Prometeu de Goethe, criaturas rebeldes a seu criador e orgulhosas de sua humanidade.

É o dilema de Adão e Eva: servidão e vergonha? Ou heroísmo da liberdade?

Tanto faz que a gente acredite ou não que eles foram realmente o primeiro casal criado. O que importa, para Greenblatt, é que sua fábula foi, durante séculos, uma maneira maravilhosa de agitar questões essenciais.
No sucesso da história de Adão e Eva, a função de Agostinho é crucial.

Inicialmente, Agostinho achava que o Gênesis era uma história para boi dormir.

Só depois de sua conversão, ele descobriu que Adão e Eva expulsos do Éden lhe eram muito úteis 1) para fundar a ideia de um pecado original (com o qual todos nasceríamos, por causa do pecado do casal inaugural) e 2) para que o tal pecado original fosse identificado com o tesão carnal.

Ou seja, pela desobediência de Adão e Eva, todos nascemos com a tara do desejo sexual.

O batismo nos livra do pecado original. E o que faremos para nos livrar do desejo sexual?

Ainda estou lendo o novo livro de Greenblatt. Enquanto isso, o artigo da "New Yorker" me mandou de volta para as "Confissões".

Minha primeira leitura do texto se dera no primeiro ano de faculdade. E minha lembrança era parecida com as quartas capas das inúmeras edições de bolso das "Confissões": um texto moderno, uma maneira de o autor interrogar suas próprias entranhas mais íntima e cativante que a de Montaigne nos "Ensaios".

Pois bem, pasmei. Um pouco porque o tempo passou e um pouco pelo prisma de Greenblatt, encontrei outro livro, inquietante e mórbido. Agostinho escreve para justificar a repressão, que ele se impõe, de seu próprio prazer carnal e de um passado que ele considera devasso e do qual ele não nos diz quase nada (homossexualidade? Promiscuidade? Vai saber).

Ele se consagra à castidade, seguindo o desejo de sua mãe, com quem, aliás, ele conhece uma espécie de êxtase orgásmica simultânea. E se defende contra seu próprio desejo transformando-o em pecado original de todos os humanos, do qual é necessário que todos se redimam.

Claro, o sexo é necessário para a reprodução, mas, para o cristão, os órgãos sexuais deveriam responder ao intelecto como qualquer outro órgão (sem tesão involuntário, então) e funcionar sem paixão e sem gozo especial, como quando alguém peida à vontade (exemplo dele, sorry).

Pela ficção seria difícil construir um relato tão exemplar do que é uma neurose.

Agora, que eu saiba, não há outros casos de um relato mórbido grave que tenha tido um sucesso comparável. Agostinho conseguiu mesmo transformar o asco doentio por seu próprio tesão em condenação do desejo sexual numa cultura inteira, por séculos.

As encruzilhadas da vida são curiosas.

Agostinho inventou um deus que pudesse ajudá-lo a reprimir seu desejo carnal.

Eu, desde a adolescência, deixei de acreditar no deus de Agostinho justamente porque me parecia absurdo que ele se preocupasse em reprimir o desejo carnal de quem quer que seja e especialmente o meu. Ou seja, ele chamou deus para que o auxiliasse na luta contra seu próprio prazer. Eu achei que realmente não precisava de um deus que fosse oposto a meus prazeres.

Alguém dirá que por isso irei ao Inferno. Veremos. Por enquanto, o fato é que Agostinho atormentou a vida de centenas de milhões. Eu, não.



































extraídadeavarandablogspot

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