ROBERTO DAMATTA O ESTADÃO
Não falam de questões, mas de pessoas. Dos “outros” – deles mesmos vistos de longe. Cada caso tem uma versão. Quando surge uma indiscrição, tergiversam. Fazem parte dos “arrumados” e estão “no mesmo barco”. Um barco com espaço para mais um grupo. Isso os torna imunes aos naufrágios. Eis um outro brasileirismo.
Aceitam abusos e tramoias porque seguem o brasileirismo das relações pessoais. Todos se ligavam com todos, de modo que basta saber quem é para safar (ou agravar) uma situação. A consideração era maior do que a eficiência que eles tanto clamavam.
Uma pessoa diz que o sujeito é fascista, mas se o amigo afirma que é um conhecido, cria-se um dilema. Esse era um brasileirismo clássico, mas eles não davam importância às relações pessoais, que era justamente a dimensão social que lhes permitia as ultrapassagens.
Assim, quanto mais faziam leis, mais os elos pessoais as neutralizavam, alimentando o sonho pueril de revoluções institucionais destinadas a consertar definitivamente o sistema. Promulgavam a lei que igualava, mas quando os acusados eram amigos, o laço pessoal – tomado como banalidade, inocência e engano – era imediatamente usado de modo que o patife virava ambicioso, o fanático um exagerado; o nazista um exaltado e o ladrão partidário uma vítima da imprensa midiática.
O abuso dos elos pessoais, que salva criminosos e os transforma em perseguidos, gera uma relação duvidosa com a lei e as instituições, pois torna a impessoalidade antipática, senão impossível. As leis são boas para os outros, não para nós. O magistrado é competente, até que se saiba de seus amigos. Então, num só movimento, se desmoralizam as leis, porque ninguém discute ou percebe o peso das relações pessoais no funcionamento da sociedade.
O país das leis não se entende com a sociedade das amizades. Não querendo conhecer a força do “dou para receber”, essa norma que amarra mais do que as constituições, pois, sem ela, não haveria simplesmente sociedade, o País inventa brasileirismos. Cria leis e mais leis com o objetivo de tornar real o anonimato sem o qual não há cidadania, mas elas reforçam os relacionamentos pessoais.
O fato é que ou estar “dentro” ou “fora” é mais importante do que o certo ou o errado. Laços ideológicos nutridos por amizade e obséquios ultrapassavam partido e credos, obrigando a isentar criminosos óbvios e a negar erros crassos de gerenciamento. As amizades englobam os interesses nacionais. Uma gigantesca onda de corrupção, ao lado de dilemas político-burocráticos, engendrou um cenário jamais previsto pelos politicólogos: o brasileirismo de um país com dois presidentes. Um afastado constitucionalmente, e o outro, empossado com o aval do STF, tentando remendar o que pode, sendo impiedosamente chamado de “golpista”.
O personalismo, tido como banal e inconsequente, é justamente o cerne dos brasileirismos. Ele leva o sistema ao pré-suicídio, porque opera com leis explícitas e com regras implícitas. A lei proíbe claramente, a amizade faculta ocultamente.
Lado a lado, essas éticas criam arranjos imprevisíveis. Os laços pessoais interferem com os institucionais e vice-versa. Quem faz é mais importante do que aquilo que foi feito.
A discriminação pessoal do “esse eu conheço!” neutraliza as leis.
O maior brasileirismo não é a tão propalada e vergonhosa desigualdade, mas, sem sombra de dúvida, é o clamor igualitário. Não podemos continuar com a teoria segundo a qual, quando se trata de país é ideológico e político; mas, quando se trata de amigos, é coisa de honra, respeito e consideração. Como conciliar esses códigos claramente indispensáveis para uma vida social equilibrada, senão discutindo suas demandas, confrontos e implicações?
Num mundo de amigos e compadres, nada pode ser mais perverso do que a igualdade de todos perante a lei.
PS: Se tudo correr bem, volto a este espaço em agosto. A folga é o meu brasileirismo.
E XTRAÍDADEAVARANDABLOGSPOT
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