Estádio Mané Garrincha é falta de zelo com gasto público
Na
primeira parte do presente ensaio demos início a uma análise crítica e
reflexiva sobre a questionável opção política do governo do Distrito
Federal (GDF) por construir um estádio de futebol de padrão
internacional com recursos integralmente públicos e capacidade para 71
mil espectadores, destinado a abrigar alguns poucos jogos da Copa do
Mundo de 2014, em uma capital que não possui nenhuma tradição ou
projeção no cenário do futebol nacional e em cujo campeonato local o
público presente à grande final de 2012 foi de somente 970 torcedores.
O
exame mais detido sobre a (falta de) “qualidade“ dos gastos públicos no
DF ao longo dos últimos anos tem o condão de possibilitar reflexões
mais críticas sobre até que ponto ou medida o administrador de
interesses públicos, legitimamente eleito através da pia batismal do
voto popular, pode valer-se do escudo pretensamente impenetrável do
mandato que lhe foi conferido para definir, unilateral e
discricionariamente, as políticas públicas governamentais. Em última
análise, almeja-se averiguar a validade e a legitimidade social das
escolhas governamentais não precedidas de ampla consulta ou participação
popular para a ordenação de grandes despesas em setores manifestamente
não prioritários para o bem estar de uma coletividade, tendo por
parâmetro maior o fundamento constitucional republicano que impõe ao
Poder Público e a todos os cidadãos brasileiros o primado do respeito à
dignidade da pessoa humana, seja na sua dimensão individual, seja na
coletiva.
Na primeira parte do texto,
confrontamos a decisão política do GDF de construir um estádio para a
Copa em Brasília com a grave situação da saúde e da segurança pública no
DF, apontando alguns dos piores indicadores sociais do país nas regiões
administrativas que integram esta unidade federada (o DF não pode ser
dividido em municípios, sendo, por isso mesmo, composto por RA’s).
Na
sequência, ingressaremos no exame da política administrativa de
educação pública do DF e na comparação entre os altos custos de
construção do Estádio Nacional de Brasília e os dos demais Estádios da
Copa de 2014, para possibilitar, ao final, a formulação de
questionamentos reflexivos sobre a qualidade dos gastos públicos no
Brasil.
Com efeito, no plano da educação
pública infantil, constata-se no DF a inexistência de qualquer proposta
ou política pedagógica efetivamente preocupadas com a “qualidade“ dos
serviços educacionais oferecidos às crianças e adolescentes de famílias
não abastadas. Tem havido preocupação exclusiva com a “quantidade“ de
professores temporários e efetivos contratados no DF, nenhuma com a
“formação“ desses profissionais e chega a beirar a utopia qualquer
pretensão de se exigir uma fiscalização mais rígida sobre as estratégias
de ensino empregadas em sala de aula pelos docentes, o que permitiria
melhor aferir o grau de eficiência das técnicas pedagógicas que vêm
sendo adotadas para a formação de nossos futuros cidadãos.
A
política pública de ensino do DF (observação válida para quase todos os
estados do Brasil) insiste em adotar métodos educacionais obsoletos e
já ultrapassados no plano internacional, até porque a busca pelo
conhecimento, segundo os maiores pedagogos da atualidade, deveria partir
do interesse das crianças e adolescentes pelos assuntos em geral e não
pelo que é imposto, quase que autoritariamente, pelos supostos
“detentores do saber“, método que apenas se presta a retirar o interesse
dos infantes pelo aprendizado (Fernando Hernández e Paulo Freire).
Faltam professores qualificados e capazes de estimular o senso crítico
das crianças. Faltam investimentos para a melhor estruturação das
escolas, mas não só investimentos: falta, sobretudo, competência de
gestão.
E apesar de todos esses
indicadores sociais escandalosamente desfavoráveis que contribuem para
fazer do Brasil um país em eterno desenvolvimento — fora do eixo dos
países ditos desenvolvidos e de bem estar social já alcançado —, quando
imaginamos que o surreal encontra limites, acabamos por nos surpreender a
cada dia com a notável capacidade dos gestores do dinheiro público na
inversão do que deveria constituir prioridade nesse país de imensos
abismos e contrastes sociais e culturais.
De
fato, em meio às inaceitáveis contradições que resultam do cotejo
analítico entre as altas receitas financeiras do DF — proporcionalmente
as maiores do país dentre as unidades federadas — e a péssima qualidade
ou ineficiência de seus serviços públicos essenciais, por outro, acaba
de chegar ao fim a construção do imponente Estádio Nacional de Brasília,
cujo valor final das obras[1] se aproximará, estratosfericamente, da casa de 1 bilhão e 500 milhões de reais[2] — o Estádio mais caro do mundo de todos os tempos[3] —,
custeado exclusivamente com recursos públicos provenientes de convênio
celebrado entre Novacap e Terracap, por meio do qual a última se
comprometeu a alienar terras públicas pertencentes ao DF para emprego de
seu produto na conclusão do moderno “Coliseu Romano“ da capital federal
— uma refêrência às belas e grandiosas colunas externas de sustentação
da obra faraônica, no melhor estilo da arena dos gladiadores históricos.
Segundo dados recentemente divulgados pelo jornal O Estado de S. Paulo,
relatório técnico de auditoria do Tribunal de Contas do Distrito
Federal (TCDF) nas contas das obras no Estádio de Brasília já aponta,
preliminarmente, um desvio de dinheiro público da ordem de pelo menos R$
212,3 milhões. O TCDF já cobra a devolução de R$ 99,9 millhões do
consórcio formado por Andrade Gutierrez e Via Engenharia e exigiu do GDF
a explicação de R$ 112,4 milhões aparentemente desviados.[4] A
auditoria em questão também assinala que o preço do assento do Estádio
de Brasília, orçado em R$ 16.938, por exemplo, é mais de duas vezes
superior ao mais barato, que é o do Estádio Castelão de Fortaleza, de R$
7.740. Na comparação com o palco da abertura da Copa de 2014, a Arena
Corinthians/Itaquerão, que tem o segundo maior custo de colocação de
assentos, o preço dos assentos é R$ 12.615, 40% menor que o do Estádio
de Brasília.
Extrai-se, ainda, de mencionado relatório técnico,
que superfaturamento, cobrança de serviços em duplicidade, erros de
quantitativos, mudança de itens do projeto original e barbeiragens
gerenciais contribuíram para o Estádio Nacional se tornar o mais caro de
todos os tempos.
Enquanto isso, na capital do Rio
Grande do Sul, Estado de grande tradição e prestígio futebolístico, foi
recentemente inaugurada a belíssima Arena Grêmio, com capacidade para
60 mil torcedores, obra construída pela iniciativa privada, com parte de
seu valor financiada pelo BNDES. O custo final da nova arena,
igualmente erguida em padrão internacional, girou em torno de R$ 500
milhões, segundo informações oficiais extraídas do site do clube
portoalegrense[5].
Apenas
para que nossa avaliação não se limite ao custo de construção dos
estádios de Brasília e de Porto Alegre, esclareça-se, para fins
comparativos, que o custo final da Arena Castelão, em Fortaleza, para 64
mil lugares, foi de R$ 518 milhões; a Arena Pernambuco, em Recife, com
capacidade para 46 mil espectadores, tem custo estimado de R$ 530
milhões; o novo Mineirão, em Belo Horizonte, custou R$ 666 milhões, para
um público máximo de 62 mil pessoas; o Estádio Itaquerão/SP, custará em
torno de R$ 800 milhões; a nova arena Fonte Nova, em Salvador, custou
R$ 591 milhões; todos com custos significativamente inferiores aos de
Brasília, com a agravante de que nas outras capitais mencionadas existem
grandes times de tradição no cenário do futebol nacional, com clássicos
vibrantes e público lotando os estádios, diferentemente do que se dá na
capital da política.
Diante de tamanhas
disparidades de valores, indicativas da flagrante falta de zelo, bom
senso, economicidade, eficiência e qualidade dos gastos públicos para a
construção, na capital federal, do estádio mais caro do futebol mundial
de todos os tempos — com custos superiores aos das mais modernas arenas
alemãs — e erguido com a finalidade precípua (para não dizer única) de
abrigar apenas alguns jogos da Copa do Mundo de 2014, impõe-se-nos, como
cidadãos e contribuintes preocupados com os destinos dos recursos
públicos, suscitar alguns questionamentos para aspectos não veiculados
nas propagandas televisivas de bebidas que buscam apenas celebrar,
mediante lavagem cerebral dos telespectadores alienados, tão grandioso
evento no Brasil. Afinal, como defenderiam importantes filósofos, muitas
vezes mais importantes que respostas são as boas perguntas, capazes de
nos conduzir às melhores e mais aprofundadas reflexões. Indaguemos,
pois!
Em primeiro lugar, como se explica,
objetivamente, o fato de o Estádio Nacional de Brasília ter custado
próximo de R$ 1,5 bilhão pagos integralmente com recursos públicos? Por
que o Estádio de Brasília, seguindo o modelo de economicidade,
planejamento e eficiência portoalegrense, não foi construído pela
iniciativa privada? Por que o Estádio de Brasília não custou “apenas“ R$
500 milhões, a exemplo da belíssima Arena Grêmio?
De
outro vértice, quais as razões de interesse social que levaram o GDF a
não optar por investir R$ 1 bilhão em setores manifestamente
prioritários para o bem estar de sua população, como segurança pública
preventiva, saúde, transporte coletivo e educação de qualidade (temas
que mais afligem a população do DF), sobrando-lhe, ainda, em torno de R$
500 milhões para a construção de um estádio de padrão internacional com
capacidade para abrigar 60 mil pessoas em perfeitas condições durante a
Copa do Mundo? Há base constitucional para tamanha discricionaridade
administrativa?
Sob os influxos do
princípio da democracia participativa, amplamente albergado pelo Texto
Constitucional de 88 (artigo 14, incisos I e II; artigo 49, inciso XV, e
artigo 61, parágrafo 2º — CR/88), como se justificar o fato de a
população do DF não ter sido ouvida através de prévia consulta popular,
audiências públicas ou até mesmo sob a forma de referendo sobre a melhor
destinação desses vultosos recursos empregados na construção do
Estádio? Qual importância tem sido dada ao desenvolvimento do princípio
da democracia participativa entre nós?
Ainda
em termos jurídico-constitucionais: afora o controle social exercido a
cada 4 anos através do voto popular, não há qualquer outro mecanismo
legal ou constitucional de controle jurisdicional das escolhas
manifestamente incoerentes do administrador e do legislador[6]?
Será que não há outras prioridades a serem atendidas pelo DF diante da
clara ineficiência e má qualidade dos serviços públicos essenciais que
disponibiliza aos seus cidadãos, mesmo sendo ele detentor de privilégios
financeiros não ostentados pelos demais estados da federação
brasileira? Por que o Poder Judiciário brasileiro ainda tem sido tão
refratário à admissibilidade desse tipo de controle jurisdicional
incidente sobre a própria constitucionalidade do denominado “mérito
administrativo“, mesmo quando a alegação de reserva de
discricionariedade administrativa presta-se apenas a obnublar a prática
de desvios flagrantes de finalidade ou abusos de poder?
Já
avançando para os possíveis aspectos relacionados à eventual
configuração de ato de improbidade administrativa, o custo final de
quase R$ 1,5 bilhão do Estádio de Brasília, três vezes mais caro que
outras belíssimas arenas nacionais, representa, ou não, intolerável
desperdício de dinheiro público dolosamente atentatório aos princípios
da moralidade e economicidade administrativas?
Em
termos de ganhos palpáveis para a sociedade, qual será o legado do
Estádio Nacional de Brasília para uma capital que não possui nenhum time
de futebol de expressividade no cenário nacional? Qual será o legado da
Copa de 2014 para a saúde, a educação e a segurança da população do DF?
O Estádio Nacional de Brasília será apenas "mais uma obra de arte no
museu a céu aberto que é Brasília“, como já o definiram alguns políticos
defensores dos altos gastos utilizados para sua construção?
Na
França, não há muito tempo, milhares e milhares de "cidadãos"
inconformados com a decisão do governo francês de retirar um simples
comprimido de aspirina das cestas básicas fornecidas gratuitamente à
população carente resolveram tomar as ruas em sinal de protesto. Os
manifestantes, ordeira, mas vigorosamente, exigiam a retratação
governamental, num admirável exemplo de mobilização, cidadania e
capacidade de reação popular. Também pudera: ali está o berço da
revolução iluminista que, em 1789, logrou derrubar a monarquia despótica
e impor limites ao arbítrio estatal, através da consagração de diversas
liberdades públicas, sob a forma de direitos individuais oponíveis
contra o Estado. Os cidadãos franceses, historicamente, possuem plena
consciência cívica de seu direito — e mais que isso, de seu dever — de
interferir nas decisões políticas governamentais capazes de afetar
negativamente o seu dia a dia. Não se contentam em simplesmente entregar
um mandato popular a um governante eleito para julgá-lo apenas ao final
de sua gestão, através do voto. Cobram-no diuturnamente pelos mais
variados e legítimos meios. No caso exemplificado, tratava-se de uma
simples aspirina a menos na cesta básica mensal. Não é preciso muito
esforço intelectual para se imaginar o que ocorreria por lá se a
situação envolvesse tamanho desperdício de dinheiro público em obra
absolutamente desnecessária para o verdadeiro bem estar do povo.
E
o que temos feito nós, subservientes cidadãos brasileiros, diante dos
desvios cotidianos dos recursos públicos que poderiam e deveriam ser
aplicados para a melhoria de nossa saúde pública e assistência social?
Como temos reagido à falaciosa segurança pública que não nos protege? E o
que dizer de nossa educação pública obsoleta e de péssima qualidade e
do enlameado transporte público coletivo que não nos serve com a sonhada
eficiência ? Pacatos cidadãos de Roma: até quando nos contentaremos com
pão e circo no majestoso “Coliseu Romano“ erguido em pleno século XXI
na capital do Brasil? Aliás, tem havido pão para todos?
[1] Considerando o custo total das obras do Estádio e das denominadas estruturas temporárias (ou provisórias) que serão construídas ao redor do Estádio por exigência da FIFA.
[2] A previsão inicial de custo do Estádio era de R$ 696 milhões de reais, segundo dados fornecidos pelo TCDF.
[3] Fonte:
http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/estadio-de-brasilia-para-a-copa-de-2014-estoura-todos-os-orcamentos-e-se-torna-o-mais-caro-do-mundo/
[4] Fonte: Jornal Estado de S. Paulo, edição de 27/01/2013.
[5] http://www.arena.gremio.net
[6] Vide, em defesa desse ponto de vista, a tese defendida por Robert Alexy, in Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 422.
Luciano
Coelho Ávila é professor de Direito Constitucional da Fundação Escola
Superior do MPDFT (FESMPDFT), em Brasília; especialista em Direito
Processual Civil pela FESMPDFT/UFSC; mestrando em Direito e Políticas
Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); promotor de
Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Revista Consultor Jurídico