por Flavio Gordon
“Uma criança de 11 anos, grávida após ser vítima de um estupro, está sendo mantida pela justiça de Santa Catarina em um abrigo há mais de um mês para evitar que faça um aborto legal”. Assim começa a famigerada matéria do The Intercept Brasil sobre o caso da menina grávida que esteve no centro do debate público na última semana.
Mediante vazamento, o portal teve acesso ao vídeo de uma audiência em que a juíza Joana Ribeiro Zimmer e a promotora Mirela Dutra Alberton, do Ministério Público de Santa Catarina, tentavam convencer a menina e sua família – que já haviam tido um pedido de aborto recusado por um hospital universitário do estado – a aguardar mais um pouco até que a vida do feto fosse viável fora do útero, caso em que se poderia realizar um parto prematuro e, se assim fosse o desejo da mãe e de seus familiares, proceder à entrega do bebê à adoção. A audiência ocorreu no período em que, a pedido da promotora, que pretendia preservá-la do risco de novos abusos sexuais, a menina achava-se recolhida num abrigo.
A divulgação do vídeo da audiência foi o que bastou para que o grosso da assim chamada imprensa “profissional” – majoritariamente radicalizada por pautas de esquerda, incluindo a defesa do aborto como “direito” das mulheres – voltasse o seu arsenal de destruição de reputações para as pessoas da juíza e da promotora. Começou, então, aquele processo cada vez mais espantoso de combinação de narrativa e manipulação da opinião pública. E a versão oficial dos sovietes midiáticos foi decretada: insensíveis ao sofrimento da menina grávida, as doutoras Zimmer e Alberton haviam intimidado, torturado psicologicamente (esse o tom da matéria do Fantástico, por exemplo) e constrangido a menina a abrir mão de um “direito” seu, já que o aborto seria legal em caso de estupro.
Ansiosa por uma oportunidade de abrir as portas para a legalização irrestrita do aborto no país, a imprensa “profissional” omitiu alguns dados cruciais sobre o caso
Como vem se tornando recorrente, a campanha midiática de assassinato de reputação da magistrada e da promotora foi acompanhada de uma série de procedimentos persecutórios, tanto por parte de movimentos políticos organizados quanto de instituições de Justiça aparelhadas por militantes de extrema-esquerda. Um abaixo-assinado organizado por um grupo feminista radical exigiu que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afastasse a juíza Zimmer por supostamente ter dificultado o acesso ao “aborto legal”. Deputados do PSol entraram com uma ação contra ela. Um outro grupo definiu sua conduta como um “atentado à dignidade humana”. E, com efeito, Zimmer começou a ser investigada pela Justiça de SC. As redações, obviamente, pareciam salivar ante a possibilidade de mil e uma punições exemplares àquela que – eis a sentença – tentou impedir o aborto legal de uma menina vítima de estupro.
Ocorre que, ansiosa por uma oportunidade de abrir as portas para a legalização irrestrita do aborto no país, a imprensa “profissional” – a começar pelo The Intercept Brasil, useiro e vezeiro em manipular e apresentar seletivamente informações vazadas de processos judiciais, como fez no caso de Mariana Ferrer – omitiu alguns dados cruciais sobre o caso. Em primeiro, lugar, ressalte-se que a juíza não poderia ter tentado “impedir um aborto legal”, muito menos tolher um hipotético direito ao aborto, simplesmente porque não há aborto legal no Brasil. Continuando a ser crime mesmo naquelas situações excepcionais em que a lei admite excludente de ilicitude (risco de vida da mãe, feto anencéfalo e gravidez decorrente de estupro), o aborto não pode jamais, evidentemente, ser concebido como um “direito”. Em segundo lugar, no caso da menina de Santa Catarina, a imprensa abortista insistiu sem pestanejar na tese do estupro, mas, curiosamente, não demonstrou nenhum interesse inicial em saber algo sobre o estuprador – sobre sua identidade ou sobre o seu destino (se havia sido preso, se continuava à solta etc.). Como o crime em si bastava para justificar a causa abortista, dispensavam-se maiores informações sobre o criminoso.
O fato é que a revelação da identidade do suposto criminoso tornava a situação bem mais complexa do que um simples caso de estupro. Eis que, depois de finalmente realizado o aborto, só então ficamos sabendo pela imprensa se tratar de garoto de 13 anos, que vivia na mesma casa da menina, com quem, sob a provável negligência dos adultos corresidentes, mantinha relações sexuais consentidas, sem indício de emprego de força. Pelo menos é o que afirmou à CNN o delegado Alisson Rocha, titular da Delegacia de Tijucas (SC), onde o caso está sendo investigado: “O que saltou aos olhos foi que, no geral, houve uma relação de afeto entre os dois, houve uma premeditação para o lado da atividade sexual, em comum acordo, havia consentimento”.
A situação é complexa porque, legalmente (segundo o artigo 217-A do Código Penal), toda relação sexual com menor de 14 anos configura crime de estupro de vulnerável. Foi nisso que, depois de revelada a identidade do “estuprador”, a imprensa abortista se fiou para reafirmar a “legalidade” do aborto no caso em tela. Ocorre que, por outro lado, a Constituição Federal e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) definem como inimputáveis os indivíduos menores de 18 anos, caso em que o garoto poderia, no máximo, ter cometido um ato infracional. Segundo reportagem desta Gazeta, a polícia trabalha com duas possíveis conclusões do caso:
“A primeira é ambos os menores responderem por ato infracional análogo ao estupro de vulnerável, de forma recíproca, caso se chegue à conclusão de que os dois praticaram o ato de forma consentida. Durante as investigações, segundo [o delegado] Rocha, foi identificado que a menina consentia e que em nenhum momento houve violência ou indução de forma unilateral para a prática do ato sexual (...) A segunda hipótese de desfecho é que nenhum dos dois responda pelo ato infracional, aplicando-se a chamada ‘exceção de Romeu e Julieta’, que visa descriminalizar a conduta de adolescentes que possuem relações sexuais recíprocas. ‘Nesse caso, leva-se em consideração o envolvimento da vítima, o ‘namoro’, ou seja, o contexto concreto. E não haveria penalização pelo ato infracional, e sim outras medidas, como o acompanhamento psicológico, psicossocial’, explica o delegado.”
A imprensa abortista insistiu sem pestanejar na tese do estupro, mas, curiosamente, não demonstrou nenhum interesse inicial em saber algo sobre o estuprador. Como o crime em si bastava para justificar a causa abortista, dispensavam-se maiores informações sobre o criminoso
Agora, se do ponto de vista técnico do direito brasileiro o fator consentimento não importa muito em se tratando da tipificação de “estupro de vulnerável” (quando a vítima é menor de 14 anos), é óbvio que ele é determinante de uma perspectiva leiga ou extrajurídica. Para o senso comum, afinal, existe uma diferença abissal entre a relação sexual de um adulto com uma criança mediante uso de violência (física ou psicológica) e a relação sexual mutuamente consentida entre duas crianças próximas em idade. O primeiro caso, que envolve uma óbvia assimetria de força e de condição, ninguém hesitaria em chamar de estupro. Já o segundo, que implica uma simetria de força e condição, dificilmente. Quem, posto que lamentando a sexualização precoce de crianças que deveriam estar alheias a esse tipo de interação, condenaria sumariamente como estuprador uma das partes? Creio que pouca gente.
Acontece que a imprensa não fez esse tipo de distinção, e toda a narrativa foi construída de modo a que o público acreditasse estar diante de um caso como o primeiro acima descrito: um estupro inequívoco, ou seja, uma violência sexual cometida por um adulto contra uma criança, caso em que, por óbvio, seria muito maior na opinião pública a tolerância para com o aborto. Afinal, só mesmo criaturas insensíveis como a juíza Joana Zimmer, ou notoriamente cruéis como os militantes pró-vida, poderiam se opor ao exercício desse “direito” por parte de uma criança vitimada por violência tão brutal. Só mesmo esse tipo de gente (decerto “bolsonarista”) poderia ousar impedir o “procedimento de interrupção da gravidez”, esse ato tão virtuoso – mas, convenientemente, jamais descrito em detalhes por seus apologistas – de fazer desaparecer magicamente a causa de tanto sofrimento? Que essa “causa” seja uma pessoa obviamente não vem ao caso. Os guerreiros da justiça social têm mais com que se preocupar...
Gazeta do Povo
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