Fernão Lara Mesquita, em O Vespeiro
O reinado de Elizabeth II fez 70 anos. Você assistiu à festa, ouviu os comentários de sempre e não saiu convencido sobre o que é que explica aquela popularidade toda num país tão moderno em pleno 3º Milênio.
Dou-lhes a minha hipótese.
O povo inglês é o detentor de uma arte única no panorama da História. Ele nunca rompeu consigo mesmo. Tem um senso prático fenomenal. Foi o primeiro a desmisturar política de religião. E isso criou um hábito que, generalizado, fez-se uma cultura: a de pensar separadamente esses dois círculos da existência, o que vai de você para dentro, que no entender deles não é da conta de mais ninguém, e o que vai de você para fora e tem de "ser combinado" com os outros.
Aos pouco isso criou uma muralha profilática que falta a todas as outras culturas européias, especialmente às latinas. Não apenas impediu que as religiões seguissem se transformando em políticas, o que de um jeito ou de outro todo mundo acabou fazendo porque, a partir do impulso inglês, saiu de moda e passou a ser caipira insistir nisso mas, por analogia, impediu também que a política se transformasse em religião.
Fora d'A Ilha, entretanto, até por balda, até pela boca milenariamente entortada pelo cachimbo, até por não saber fazer diferente, deu-se o inverso: transformar a política em religião é que entrou na moda e tornou-se "cult".
Se antes era a religião que salvava almas e queria "construir um novo homem", agora era esse o papel da política. E por nada menos que a "salvação da humanidade", claro, continuou valendo, como desde sempre, qualquer barbaridade...
Os ingleses nunca se levaram tão à sério. Nunca acharam, nem que têm esse poder, nem que fosse necessário "salvar almas". Sempre estiveram à vontade com a humanidade como ela é. Por isso mesmo, sempre entenderam que, por baixo da pompa, da circunstância e do blá, blá, blá intelectualmente tortuoso, quem quisesse mesmo entender a que se reduz o poder devia, antes de mais nada, follow the money.
Identificado o "X" da questão, práticos que são, trataram de deixar seus reis sempre pobres ou, senão isso, não ricos o bastante para conseguir manter um exército. Assim, quando suas majestades augustas e excelentes - ninguém discute! - resolviam que precisavam mostrar a sua glória com guerras e outras demonstrações extravagantes, tinham de ir pedir um dinheirinho ao Parlamento eleito pelo povo, que só abria a torneira em troca de um direito a mais.
Tudo isso rolou ao mesmo tempo em que, lá no continente, que corria na mão inversa, os reis se transformavam em nada menos que "sóis" brilhando em seus palácios folheados a ouro.
Na Inglaterra, não. Lá onde o povo se ia apropriando cada vez mais da "torneira", os castelos continuavam sendo de pedra e de madeira. Menos ouro nas paredes, menos sangue nas revoluções. Eles ficaram com o sistema que vinha desde muito, muito lá de traz, passando a regra de pai pra filho sem nunca mudá-la essencialmente senão para melhor. A justiça era distribuída não segundo a vontade do juiz ou a cara do réu mas pela tradição escrita, pela qual o juiz era e continua sendo obrigado a se balizar para dar sempre a mesma sentença para os mesmos crimes, dos que vierem a ser condenados não pelo seu "alto discernimento" mas sim pelos júris dos iguais de cada réu.
Graças a isso os ingleses, ao contrário dos europeus continentais que jogaram tudo isso no lixo em sucessivas revoluções, sempre desfrutaram de válvulas de escape concretas para as vicissitudes da vida que a todos interessava preservar. E nessa toada foram, passo a passo, até o fim do fio dessa meada, e acabaram metendo também o rei under god e under the law, porque não?
Vade retro com essas "novas humanidades" boiando em rios de sangue e paridas por reinados de terror. Na Inglaterra cada novidade que chegava era tratada com cuidado mesmo quando ungida pela simpatia das massas, e as novas instituições não "derrubavam" as velhas. Conviviam com elas até que uma assimilasse da outra o melhor das duas, ficando descartado por desuso apenas o bagaço.
A rainha é isso.
No mundo da egolatria desabotinada que a internet criou; depois de tudo que os "líderes geniais dos povos", os "fuherers" e os "duces"dos "reichs de mil anos" fizeram com o século 20 e diante do que os Putins e os trilionários da internet e seus caronas, com suas vaidades flamejantes e sem limites, estão fazendo com o 21, ela vale mais a cada minuto.
Enquanto o resto da humanidade tem de se rebolar para conter as "viagens na maionese" dos egos nascidos e criados nos cafundós do judas mas grandes o bastante para se candidatar a "Rei Sol" ainda que para brilhar somente por quatro ou cinco anos, o primeiro-ministro inglês tem de sentar-se semanalmente com a rainha nonagenária, a quarta da dinastia de Windsor, o 17º dos "bancos de DNA" de onde saíram, ao longo dos séculos, tantos que reinaram sem reinar absolutamente na Inglaterra. E isso dispensa qualquer outro inglês de lembrar ao primeiro-ministrozinho da vez a bobagem que é ele entrar no "trip" do poder e começar a "se achar" que faz tantos pequenos grandes homens com egos com elefantíase arrebentarem com a humanidade por aí afora.
A realeza britânica tornou-se, assim, a mais sólida garantia da democracia britânica. Não fosse por mais nada, só por essa vacina automática contra a doença da vaidade, a que mais matou e mais continua matando na história da nossa espécie em que acabou por se transformar, ela já vale muito mais do que pesa. Melhor que isso, mas sem o mesmo charme, só fizeram os suíços que, para colher o mesmo resultado, não têm mais presidente da republica.
* Publicado originalmente em https://vespeiro.com/2022/06/03/a-importancia-dessa-rainha/
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