Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 26 de março de 2021

"Com quantos fracassos se faz um G***** M*****?",

 questiona Paulo Polzonoff

Se há alguma verdade naquele ditado (acho que africano) que diz que para transformar uma criança num adulto decente é preciso o trabalho de toda uma aldeia, fico me perguntando quantos errinhos, pecadilhos, decisões tomadas no calor dos acontecimentos e até mesmo quantas palavras tortas, daquelas diabolicamente cheias de boas intenções, foram necessários para que produzíssemos um ministro da Suprema Corte como G***** M*****.

Quantos “nãos” atravessados G***** M***** ouviu do pai? Ou melhor, quantos “nãos” necessários ele deixou de ouvir da mãe? Quantas vezes sua carne experimentou os castigos corporais antigamente tão comuns? Que exemplos a criança G***** M***** testemunhou nos cômodos da casa a ponto de se tornar o que é hoje?

Imagino, ainda, o que não disseram os professores a um G***** M***** de calças curtas, impressionável, e depois já maiorzinho, na faculdade de direito. É bem provável que tenham ensinado a ele que o papel da justiça não é alcançar uma sabedoria parcimoniosa, e sim diminuir a desigualdade social. Donde o estudante espinhento e cheio daquela intensidade apaixonada que Yeats identificou nos “piores” concluiu que seu papel no mundo era usar a tal de “letra fria da lei” para transformar o mundo.

Quantos programas de auditório e telenovelas não ajudaram a consolidar a mentalidade que deu origem a G***** M*****? E continuam dando origem a um G***** M***** em potencial. Sim, estou falando desse menininho aí perto, mochilão pesado nas costas, sorriso entre a ingenuidade e a traquinagem, cheio de ideias mirabolantes na cabecinha de vento. Um moleque tão bom, você diz, mas que passa o dia absorvendo valores os mais deturpados possíveis.

Incapaz de lidar com o poder

Não é incrível que tenhamos criado as condições ideais para o surgimento de uma pessoa, ou melhor, de um grupo de pessoas que, diante de um dilema qualquer, seja a suspeição de Moro ou a legalização do aborto ou até mesmo a construção de uma ferrovia que gerará prosperidade, toma sempre as piores decisões possíveis, com base em argumentos que exaltam o umbigo e humilham qualquer noção básica de busca pela Verdade?

Fracassamos. Fracassamos feio. Na educação, na promoção de valores, no cultivo de sentimentos virtuosos e até mesmo na elaboração de uma estrutura política e social capaz de dar tanto poder a uma pessoa que evidentemente é incapaz de lidar com ele. O Sol só é o Sol porque sabe a hora de arder, ensina outro ditado africano que acabei de inventar.

E aos que dizem que pessoas como G***** M***** agem como agem por interesses pecuniários, reajo com falsa indignação: não acredito! Dinheiro é instrumento do mal desde que começamos a trocar pedrinhas douradas por cereais, mas chega um momento em que a diferença entre um e dois milhões na conta bancária não faz sentido. Ainda mais levando em conta todos os privilégios e segurança do cargo que essa pessoa em específico ocupa.

Não, embora o dinheiro explique muita coisa, neste caso não é dinheiro. É uma visão deturpada da moral, própria e alheia. É falta de noção histórica. É narcisismo. É um afastamento de todas as coisas que se sabe universalmente boas e justas. É o mal que não faz nem esforço para se disfarçar de bem. É a celebração diabólica do eu em detrimento de algo maior, mais importante e muito mais perene.

Olho para G***** M*****, mas não só para ele, e me vêm à mente as palavras de C. S. Lewis sobre a ambição de se viver numa sociedade verdadeiramente cristã – no sentido filosófico e não religioso, se você assim preferir. É um trabalho que começa hoje, aqui e agora, comigo e com você. Mas que só verá resultados, se é que verá, num futuro do qual estaremos ausentes. Um trabalho que envolve ensinar às crianças (sim, às crianças, porque todo G***** M***** já foi um Scalia em potencial) valores nobres, daqueles que se opõem discretamente ao exercício arbitrário do poder.

Um dia, quem sabe

De nada adianta gritar contra G***** M***** nas redes sociais quando nossos filhos ou netos estão sendo ensinados a impor sua vontade sobre o coleguinha de classe ou de trabalho. Quando eles aprendem, para usar aqui o ensinamento do grande Fred Rogers, que é preciso “mudar o mundo” para ser uma pessoa digna e respeitada. Quando eles acreditam que a felicidade expressa na Constituição e impressa na alma são a mesma e se resumem à saciedade dos prazeres mundanos.

Até lá, é melhor já ir se resignando. Mesmo com a aposentadoria de G***** M***** (em dezembro de 2030. Haja paciência!), teremos ainda algumas décadas de ministros, digamos, esquisitos e de decisões controversas ou até mesmo espúrias. Ficaremos indignados, revoltados mesmo. Diremos uns aos outros que a única saída é o aeroporto. Decretaremos luto simbólico. Usaremos adjetivos como “inaceitável” ou seu parente de alta estirpe, “inadmissível”.

Até que um dia, quem sabe, um presidente semivirtuoso nomeará um ministro decente de um novo Supremo Tribunal Federal. Não perfeito. Muito menos santo. Apenas decente o bastante para ser juiz, e não um ativista. E a ele se seguirá outro, um pouquinho mais decente – a ponto de se restringir ao seu papel de guardião da Constituição. E a esses dois se seguirão outros, cada qual um pouquinho melhor que seu antecessor. Até que o colegiado esteja tomado por homens decentes e honrados, preocupados em fazer o certo pelo certo, em buscar a verdade pela verdade.

E em defender todos esses princípios que hoje nossos filhos e netos, G***** M***** em potencial, consideram ultrapassados ou “coisa de carola” ou, pior, a marca do otário numa sociedade que ainda exalta o malandro, que vive de pequenos sucessos num oceano de fracasso, o ixperto e seu arsenal de “mentiras inofensivas” e o ardiloso escravizado pela soberba.




Gazeta do Povo













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