Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 26 de março de 2021

"Gilmar não enganaria Tom Jobim",

 por Augusto Nunes  O especialista em olhares não compraria um carro usado do Juiz dos Juízes

Paulo Francis dizia que o grande ator não é gente. 

“É outra coisa, muito acima de gente comum”, garantia. 

E apresentava a prova definitiva. 

“Por exemplo: nem o mais infeliz viúvo do mundo vai chorar como Marlon Brando no túmulo da mulher, na cena de Último Tango em Paris. E ele só foi viúvo no cinema”. 

Se ainda estivesse por aqui, creio que encamparia a complementação da tese que esbocei faz tempo: o grande canastrão também não é gente. 

É outra coisa, muito abaixo de gente comum. Interpretando o papel do Juiz dos Juízes na versão data venia da Ópera dos Malandros, encenada na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes provou que nem o mais desqualificado juiz de futebol conseguiria superar em canastrice vigarista o ministro que faz o que pode — e, com frequência crescente, o que não deve — para elevar o cinismo a uma forma de arte.

O Maritaca de Diamantino festejou nesta semana o parto de outro Dia da Infâmia, em gestação desde que o ministro Edson Fachin resolveu anular as condenações impostas a Lula nos processos que nasceram e cresceram em Curitiba. 

O lugar certo era Brasília, mudou de ideia o relator dos casos da Lava Jato, depois de cinco anos afirmando o contrário. 

Fachin ressalvou que a decisão não transforma Lula em inocente. 

Continua culpado, mas nada deve à Justiça e os processos terão de recomeçar do zero. 

A ficha não está limpa, mas o dono do gordo prontuário está liberado para disputar até a Presidência da República. 

Animadíssimo com a absolvição do bandido, Gilmar tentou já no dia seguinte punir o mocinho. 

Era só fazer de conta que Sergio Moro ainda usava fraldas quando descobriu que viraria ministro de Estado se prendesse um ex-presidente da República. 

Por isso, o juiz não foi imparcial ao julgar o mundaréu de bandalheiras envolvendo um tríplex no Guarujá. 

Por isso, bastava oficializar a suspeição de Moro, sepultar a maracutaia e apressar o velório da Lava Jato.

A cada cinco anos, Gilmar esquece o que disse nos cinco anteriores. Em 19 de agosto de 2015, por exemplo, parecia enxergar as coisas como as coisas eram. 

“O que se instalou no país nos últimos anos e está sendo revelado na Lava Jato é um modelo de governança corrupta, algo que merece um nome claro: cleptocracia”, constatou. 

(Cleptocracia, aliás, não é um nome claro para muitos brasileiros. Sua Excelência poderia ter substituído o palavrão pelo seu significado: um lugar governado por ladrões.) 

“A Lava Jato estragou tudo”, prosseguiu. 

“O plano era perfeito, mas esqueceram de combinar com os russos.” 

Agora, “a operação que salvou a Petrobras” tornou-se “o maior escândalo judicial da nossa história”. 

E Gilmar age como inimigo juramentado do juiz que liderou a mais destemida e produtiva operação anticorrupção da História. 

(Tente entender: Gilmar, desafeto de Moro, considerou-se insuspeito para participar do julgamento do juiz da Lava Jato. E Moro foi colocado sob suspeição porque seria inimigo de Lula e, portanto, incapaz de portar-se imparcialmente. Difícil entender? Não se incomode. Se alguém entendeu, não contou a mais ninguém — talvez para não receber à meia-noite um mandado de prisão em flagrante assinado com um X por Alexandre de Moraes.)

Um pedido de vista do ministro Nunes Marques adiou por uma semana o final infeliz do faroeste à brasileira que teve Gilmar como produtor, diretor, roteirista e astro do elenco de canastrões. 

Irritado com o voto favorável a Moro, assustou Nunes Marques sublinhando com um medonho sobe e desce do beiço o palavrório amalucado: o bom ladrão se salvou, mas não há salvação para um juiz covarde. 

(O Brasil que presta acha que o ladrão é Lula, e nada tem de bom. Acha também que covardes são juízes que agem como padroeiros de bandidos.) 

Como sempre acontece com atores de picadeiro, as lágrimas continuaram longe dos olhos quando o orador tentou chorar em homenagem ao advogado Cristiano Zanin, pelo esforço que fez para resgatar da cadeia um corrupto duas vezes condenado em segunda instância. 

Não é pouca coisa. 

Mas não é tudo. 

Gilmar também fingiu ignorar que a vitória da obscenidade estava assegurada. 

Sabia fazia muito tempo que Cármen Lúcia topara sujar a biografia para reduzir-se a Carmendes. 

Haja cinismo.

Comecei com Paulo Francis, termino com Tom Jobim. 

Numa noite no Rio, minutos antes do início da entrevista para um programa de TV, ouvi a pergunta inesperada. 

“Você sabia que sou especialista em olhares?”. 

Não, não sabia. 

Tom foi em frente: 

“É muito útil. Os olhos escancaram a alma e o caráter, descubro como a pessoa é em um segundo. Tem o olhar honesto, o esquivo, o sincero, o dissimulado, o arrogante, o confiante, o medroso, o perverso, e por aí vai. Um grande ator consegue mudar o modo de andar, o penteado, o figurino. Pode engordar ou emagrecer, pode usar maquiagem para ficar mais jovem ou mais velho, pode mudar quase tudo. Menos o olhar. Ninguém me engana. Nem o Marlon Brando”. 

Marlon Brando, de novo. 

Nesta semana, lembrei-me dessas conversas e lamentei de novo a partida da grande dupla. 

O que Francis estaria escrevendo sobre Gilmar Mendes? 

E como Tom Jobim definiria o olhar do gerentão do Supremo?

Eis aí uma mirada que conheço bem. 

Já vi esse olhar inconfundível nas brigas no portão do grupo escolar e do colégio, nos tensos barulhos de 1968, nos tumultos que encerraram antes da hora o jogo de futebol na várzea, a bordo do avião forçado ao pouso de emergência, num país assombrado pelo fantasma da guerra civil, em dois arranha-céus lambidos pelo fogo — enfim, já vi esse olhar em rostos alheios confrontados com perigos reais e imediatos. 

É o mesmo exibido por Gilmar Mendes nos vídeos que o mostram em alguma rua de Portugal, tentando afastar-se de dois ou três brasileiros indignados com o que fez, faz e pretende fazer depois de cobrir-se com a toga negra, fantasia que o transforma em Gilmar, o Supremo. 

É o olhar de quem esbanja valentia em duelos retóricos e bate-bocas em sessões do tribunal, mas sabe desde a infância que será sitiado pelo pânico quando a situação requerer a coragem física que sempre lhe faltou. 

Sublinhado pela palidez e pelo sorriso bestificado do pugilista no momento do nocaute, o olhar do ministro é o desenhado pelo medo.

Revista Oeste

















PUBLICADAEMhttp://rota2014.blogspot.com/2021/03/gilmar-nao-enganaria-tom-jobim-por.html


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