por Paula Leal
O jurista analisa o cenário político-jurídico do país e afirma que o STF precisa resgatar o respeito da nação
FOTO ANDRADE JUNIORNão é de hoje que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem exercido um poder muito além de seu dever de guardião da Constituição Federal. As recentes decisões do Supremo que envolvem a prisão do deputado Daniel Silveira, a anulação dos processos do ex-presidente Lula e a suspeição do ex-juiz Sergio Moro reforçam ainda mais a insegurança jurídica que o Poder Judiciário impõe ao país.
Aos 86 anos, o jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Ives Gandra da Silva Martins ainda atua como advogado, é frequentemente convidado a ministrar palestras, aulas e a conceder entrevistas para analisar o cenário político-jurídico do país. Com mais de 60 anos de advocacia, é um crítico contundente do ativismo judicial exercido pela Corte brasileira. “Eles se transformaram num poder político. Nós passamos a ter três poderes políticos, e isso traz insegurança jurídica porque deixamos de ter um poder absolutamente fora da participação política, com a função exclusiva de ser guardião da Constituição.”
Para Gandra Martins, o Supremo “tem utilizado dois pesos e duas medidas” e o Congresso Nacional precisa reagir aos desmandos do STF. O jurista analisou ainda as decisões do Supremo e disse que o ministro Fachin “deu a impressão para o mundo de que o Brasil é contra o combate à corrupção”. De seu escritório e por telefone, Gandra Martins concedeu a seguinte entrevista à Revista Oeste.
O senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO) é autor de um pedido de impeachment contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. Um abaixo-assinado, que já conta com mais de 3 milhões de assinaturas, foi criado para pressionar o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM), a aceitar o pedido do senador. Só nos dois anos de gestão do ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre foram protocolados 36 pedidos de impeachment contra ministros do Supremo. No atual cenário, existe crime de responsabilidade que possa justificar um processo de impeachment contra um ministro do Supremo?
Entendo que todos esses processos são fruto da irritação do povo em razão de o Supremo ter invadido competência de outros Poderes, o que não poderia fazer. Apesar de entender que o Supremo tem exercido um ativismo judicial incompatível com aquilo que está na Constituição, não é o caso de impeachment. Esses pedidos alertam o Supremo de que eles estão perdendo aquele retrato clássico que existia do velho Supremo Tribunal Federal, de respeitabilidade perante a nação. Eles se transformaram num poder político. Nós passamos a ter três poderes políticos, e isso traz insegurança jurídica porque deixamos de ter um poder absolutamente fora da participação política, com a função exclusiva de ser guardião da Constituição.
É evidente que um pedido desses deve preocupar os ministros do Supremo, na medida em que demonstra que o povo não está contente, eles estão com uma imagem desfigurada. Mas, do ponto de vista estritamente constitucional, não vejo fundamento para que o pedido avance. Esse abaixo-assinado são 3 milhões de brasileiros que não tiveram medo do Supremo ao pôr seu nome lá. Hoje, o Supremo é menos respeitado e mais temido. Antigamente, os ministros eram respeitados, não eram temidos, porque quando eles aplicavam a lei era só como legislador negativo, como intérprete da Constituição. Eles não faziam a lei, eles interpretavam a Constituição. Hoje, não. Eles entram na competência do Legislativo, na correção dos rumos do Executivo.
A maneira como os juízes são indicados para o Supremo, por indicação do presidente da República, é a mais adequada?
Desde a Constituinte de 1988 que eu sou contra isso. Mas a minha sugestão, nem quiseram pôr em discussão. Tinha proposto o seguinte: o Conselho Federal da Ordem dos Advogados indicaria seis nomes; o Ministério Público Federal indicaria três nomes e o Ministério Público Estadual indicaria outros três; e os três tribunais superiores indicariam mais seis nomes — o Supremo, dois; o STJ [Superior Tribunal de Justiça], dois; o TST [Tribunal Superior do Trabalho], dois. Então, teríamos 18 nomes que seriam levados ao presidente da República, que escolheria um entre 18 nomes de grandes juristas, recomendados pelas entidades máximas das três instituições que estão vinculadas ao Poder Judiciário, nomes de grande relevância.
No formato proposto por mim, oito ministros necessariamente viriam da carreira da magistratura e três do quinto constitucional [regra constitucional que estabelece que um quinto das vagas de alguns tribunais será composta de membros do Ministério Público e de advogados; a regra não se aplica ao STF]. Agora, essa ideia foi afastada, não quiseram alterar. Disseram que desde a primeira Constituição, em 1891, já era desse jeito, e a sugestão não foi adiante. Mas estou convencido de que seria a melhor opção.
Foi acertada a decisão do STF que garantiu autonomia para Estados e municípios determinarem medidas de combate à pandemia?
Pela Constituição Federal, artigo 21, inciso 18, compete à União “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações”. Em uma federação do tamanho da brasileira, com realidades tão díspares, com Estados com situações diferentes, como colocar uma regra comum para todos? O que o Supremo não deixou claro é que a competência da União teria de ser geral e os Estados, dentro daquele arcabouço total, teriam autoridade para tomar as medidas cabíveis. Os ministros deixaram tão clara a autonomia de Estados e municípios que praticamente esse inciso 18 não foi citado. Eles passaram por cima do artigo 21 e não o interpretaram na extensão que deveriam. Então, essa insuficiência na interpretação do artigo constitucional é que provocou grande parte dos desentendimentos entre União, Estados e municípios.
Em 19 de fevereiro, por 364 votos a 130, a Câmara dos Deputados votou pela manutenção da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), determinada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes. A Câmara se acovardou?
Na prisão do deputado Daniel Silveira, os ministros reformularam o que estava escrito no artigo 53 da Constituição Federal: “Deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Não vejo como um cidadão, em sendo deputado, por maiores absurdos que venha a dizer, possa ser preso. Ora, as mais absurdas declarações estão dentro do “quaisquer” previsto em lei. Ele não poderia ter sido preso. Ainda, a figura do flagrante perpétuo é uma criação que caberia ao Poder Legislativo, não ao Poder Judiciário. Juridicamente, criar a figura do flagrante permanente, como no caso do deputado, é um precedente perigosíssimo e me preocupa [o vídeo gravado pelo deputado e veiculado na internet foi considerado situação de flagrante]. Há uma série de invasões de competência que têm ocorrido e o Legislativo não tem se defendido adequadamente. A Câmara poderia ter negado a prisão do deputado. Mas houve pressão, muitos parlamentares são investigados, então preferiram não ficar mal com o Supremo. Tenho a impressão de que naquele momento eles abdicaram de um direito. Tinham de ter dito: “Não permitimos a prisão, vamos julgar aqui e vamos punir”. Porque a maneira como o deputado falou é inaceitável e, a meu ver, merecia punição.
“O ministro Fachin deu a impressão para o mundo de que o Brasil é contra o combate à corrupção”
Como corrigir essas invasões de competência do STF? Quais seriam as medidas que poderiam refrear o poder do Supremo?
No caso do deputado Daniel Silveira, que atacou os membros da Corte, a Lei de Segurança Nacional foi aplicada. Quando xingam o presidente de genocida, o que representa evidentemente uma violação, isso é liberdade de expressão. O Supremo tem utilizado dois pesos e duas medidas. O Congresso Nacional precisa reagir e dizer “não aceitamos isso”. O inciso 11 do artigo 49 da Constituição diz que cabe ao Poder Legislativo zelar pela sua competência legislativa. Se cabe a ele zelar, ele tem de ter instrumentos para isso. E, a meu ver, há um instrumento na Constituição, que é o decreto legislativo. Uma decisão do Supremo que foi incorreta e invadiu competência, o Legislativo poderia ativar o decreto legislativo para anular essa decisão. Mas essa é uma tese que não é aceita por todos os constitucionalistas e, por outro lado, acho que falta coragem ao Poder Legislativo para zelar pela sua competência.
Qual sua avaliação sobre a decisão do ministro do STF Edson Fachin que anulou os processos do ex-presidente Lula?
Respeito muito o ministro Fachin como jurista. Agora, o povo passou a ter uma impressão penosa dele. Nesta semana, saiu uma pesquisa em que mais da metade da população brasileira considera que a decisão do Fachin está errada [Pesquisa Datafolha divulgada em 22/3 mostra que 51% dos entrevistados acharam que Fachin agiu mal ao anular as condenações do petista]. O ministro Fachin subiu no palanque para defender a eleição da então ministra Dilma. Ele foi eleitor de Dilma, mas não eleitor que deposita voto, eleitor que sobe em palanque para defender a candidatura. Então a sua ligação com o PT é muito clara. Aí vem o julgamento do ex-presidente Lula, do partido que ele defendeu. Apesar de eu ter uma grande consideração e saber que o ministro deve ter decidido em função de suas convicções pessoais, para o povo dá a impressão de que ele é um petista que decidiu em função do elo com o partido. E mais, o ministro decidiu em um embargo de declaração de um habeas corpus. O habeas corpus é um processo muito limitado, não é amplo. Essa questão preliminar de incompetência de foro alegada pela defesa de Lula foi rechaçada por três desembargadores do TRF-4, cinco ministros do STJ e seis ministros do Supremo, sempre alegando a mesma coisa e nenhum deles aceitando. O próprio ministro Fachin, em dez decisões, disse que o foro era competente. E agora anula quatro anos de trabalho, fazendo com que quase todos esses crimes sejam prescritos, porque terão de ser analisados novamente. O ministro Fachin deu a impressão para o mundo de que o Brasil é contra o combate à corrupção.
Faz sentido a afirmação de que o ministro Fachin teria anulado os processos de Lula alegando incompetência do foro de Curitiba para proteger os atos da Lava Jato e evitar a suspeição de Moro?
Isso não se sustenta. Tanto é verdade que o ministro Fachin queria que o ministro Gilmar Mendes extinguisse o processo que estava com ele. No dia seguinte, o ministro Gilmar Mendes votou contra. Quem conhece o ministro Gilmar Mendes sabia perfeitamente que ele nunca iria considerar o processo extinto. Esse argumento é de uma fragilidade inaceitável. Prefiro aceitar o argumento de que o ministro Fachin mudou de opinião do que outra coisa. Como é que ele vai salvar a Lava Jato, abrindo uma avenida monumental para todo mundo que foi condenado poder utilizar o mesmo recurso que Lula utilizou? Todo cidadão que alegou incompetência de foro nos processos anteriores vai fazer a mesma coisa que Lula. Isso é proteger a Lava Jato? Claro que não.
Por 3 votos a 2 a favor do ex-presidente Lula, a Segunda Turma do STF declarou em julgamento na última terça-feira, 23, que o ex-juiz federal Sergio Moro agiu com parcialidade ao condenar o petista no caso do tríplex do Guarujá. O que essa decisão representa para a sociedade brasileira?
Embora cada ministro tenha seus motivos para votar como votou, para o povo brasileiro, que não é especialista em Direito, passou a imagem que o STF é contra o combate à corrupção. Mais do que isso, que a Lava Jato acabou, pois todos os condenados vão levantar o mesmo argumento. A imagem para o povo, apesar da qualidade dos ministros, ficou maculada.
O ex-juiz federal Sergio Moro foi parcial em suas decisões durante a Operação Lava Jato?
Primeiro, a prova utilizada é uma prova ilegal [vazamento de mensagens trocadas entre procuradores e o juiz Sergio Moro durante a Lava Jato]. Mas há um consenso em direito penal de que, se a prova ilícita é a favor do réu, ela pode ser utilizada. Só não pode ser utilizada a favor do autor. Agora, de qualquer forma, é uma prova ilícita. Moro deu indiscutivelmente um tratamento especial, estendeu um tapete vermelho ao Ministério Público, mas não cerceou a defesa. E, se você ler a decisão do Moro, foi só baseada em fatos. E os outros três julgadores também examinaram com base em provas. Todas as decisões do processo de Lula foram baseadas em fatos e provas. Não estou fazendo juízo de valor de Lula, quero deixar claro. Estou apenas analisando aspectos jurídicos e processuais do caso. Na prática, não vejo nos elementos que estão aí dados para considerar que houve suspeição. Não há provas de que Moro não estava agindo corretamente.
Em julho deste ano, está prevista a aposentadoria compulsória do ministro Marco Aurélio Mello. Qual o jurista que o senhor gostaria de ver sentado em uma cadeira no Supremo?
Quem eu gostaria, que levaria a me afastar da advocacia, seria um ministro que é o decano do Tribunal Superior do Trabalho. Tem uma experiência monumental, titulação acadêmica, livros publicados. Mas, na verdade, vejo poucas possibilidades porque o próprio presidente já disse que será um evangélico. Apesar dos meus 86 anos, continuo um otimista inveterado. Tenho esperança de que o Supremo volte a ser o que era.
Revista Oeste
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