por Harley Wanzeller
Em lançamento recente do circuito hollywoodiano, a vida de Coringa, ou "Joker", estrelado por Joaquim Phoenix, é retratada como a verdadeira "saga" do vilão mais temido de Gotham City, o único capaz de tirar o sono do homem morcego. É mais uma estória que se constrói pela curiosidade suscitada em nossas mentes quando nos deparamos com frases como "toda história tem dois lados", ou "você sabe o que o levou a fazer isso?", ou "você teve a ´empatia´ suficiente para entender o que leva um ser humano a praticar tais coisas?".
Não que estas reflexões devam ser descartadas de plano. Não se trata da falta de interesse em ver os dois lados de uma moeda, ou insistir em "ter aquela velha opinião formada sobre tudo".
Mas quando nos deparamos com a ficção, devemos ter em conta que, em abstrato, as mensagens e valores expostos pela obra ficcional buscam encontrar acolhida no íntimo do público que consumirá o enredo.
Como Aristóteles e outros vários filósofos e pensadores identificaram, seja na era antiga ou na moderna, a poética constitui a porta de entrada para a formação do convencimento do ser humano, sendo capaz, inclusive, de modificar padrões comportamentais que, executados amiúde, modificam os próprios padrões culturais que nos guiam.
A poética é o primeiro passo que devemos utilizar na busca da verdade. Daí conseguimos extrair, por exemplo, o impacto que as belas lições deixadas por C.S.Lewis, J.R.R.Tolkien e G.K. Chesterton tiveram na formação daqueles que incessantemente buscam o caminho da verdade, e sofrem as agruras do enfrentamento da ressignificação dos valores, promovida pelo marxismo cultural.
A indústria cinematográfica vive deste poder e sabe, como ninguém, explorá-lo.
Então, o que a estória de Coringa (ou "Joker") nos ensina?
Nada!
Nada!
Pelo menos, nada de novo pois, lembre-se, estamos no Brasil.
Infelizmente, ao ver a estória de um bandido contada de maneira épica, a sociedade brasileira enfrenta a dura realidade do espelho diante de si.
A retórica da criminologia sob o enfoque da visão do bandido é a nossa regra. Estamos cansados de escutar máximas como "você não tem empatia pela vida daquele que cometeu um erro?", ou mesmo a mais direta bravata "ele é vítima da sociedade!". E há cansaço nos dois sentidos do termo, pois ouvimos ininterruptamente estes discursos e estamos, de igual forma, cansados de seus resultados, apesar de sabermos que tais reflexos seriam abundantemente comemorados por Luigi Ferrajoli, como de fato o são pelos fofos garantistas gerados a partir de seus estudos.
Como fica a empatia pela vida que se perdeu em decorrência da violência de um bandido?
Bom. No contexto do filme, a identidade maligna de "Joker" é solenemente ignorada, dando-se importância única às dificuldades que o "pobre" palhaço mal compreendido teve no curso de sua formação, e na demência decorrente destas dificuldades. O argumento sai da figura do bandido e das consequências de seus atos, deslocando-se com velocidade imperceptível para a vitimização da figura do bandido.
Sem querer dar "spolier", a mensagem é bem clara: "Joker" não teve culpa! A culpa foi de todos - da mãe, da rejeição social, dos ricos, dos "mauricinhos", dos comediantes, dos psicólogos, dos psiquiatras, da polícia, do governo, do sistema - menos de "Joker".
A retórica bandidólatra consegue isso! Transforma um bandido em herói de resistência contra um "sistema opressor". Estes valores robustecem a formação de opinião e acabam sendo internalizados por nós todos, sem a menor cerimônia. Aliás, nem mesmo nos damos conta das modificações que nos ocorrem e, como num passe de mágica (ou de poética), acabamos tendo mais "empatia" pelo criminoso do que pela vítima.
Assim foi feito com a massa que defende "Joker". A massa que o transformou em ídolo e chefe político de Gotham City.
Imagino se "Joker" vivesse em um campo de concentração, sofrendo das mesmas mazelas experimentadas por Viktor Frankl. O que ocorreria com o desafortunado palhaço que nega o fato da vida ser uma somatória de sua própria existência aliada às circunstâncias que ele próprio vive? Por graça e obra divinas, Viktor Frankl utilizou as dificuldades como circunstâncias propícias para a busca da verdade, e hoje temos os estudos sobre logoterapia consolidados nos mostrando que, ao fim e ao cabo, as dificuldades são exatamente aquilo que nós permitimos que sejam em nossas vidas, podendo funcionar como uma corda atrelada a um balão de gás, segurada com toda força possível, ou uma pedra amarrada no calcanhar.
A cultura da vitimização mostrou seus resultados em "Joker", personagem que, por suas escolhas ou omissões, deixou-se acorrentado a uma pedra enorme, trazendo consigo muitos outros que preferem a covardia da vitimização do que o enfrentamento da realidade.
No Brasil, nada é diferente.
Na verdade, Gotham City é uma cidade fictícia, com personagens fictícios que estão aí para nos lembrar de um país detentor de uma taxa de homicídios superior a 60.000/ano; de um país sempre atento para a proteção do bandido, e que sofre de amnésia quando se tenta proteger a vítima; de um país que recentemente legalizou a perseguição das autoridades que, ao invés de terem independência necessária para a ultimar a proteção da sociedade, estarão agora ocupando os bancos dos réus, bastando para isso um simples estalar de dedos dos bandidos (refiro-me à Lei de Abuso de Autoridade); de um país onde a busca do bom, do belo e do verdadeiro cede espaço à busca do nada.
Diante disso, fiquem tranquilos!
Diante disso, fiquem tranquilos!
"Joker" jamais sairá de Gotham para nos perturbar.
O Brasil é demais para ele.
*Harley Wanzeller é magistrado federal trabalhista, escritor, e membro do Movimento de Combate à Impunidade. (20.10.2019)
**Publicado originalmente no Estadão
0 comments:
Postar um comentário