por Percival Puggina
Em diferentes lugares do passado, muitas coisas se perderam no nosso país. Uma delas foi a visão de história. Perdeu-se a linha do tempo, a noção de continuidade e, com isso, a própria identidade. A ignorância deu origem ao palpite. A profunda ideologização das últimas décadas abriu vaga, posto de trabalho, carteira assinada e ascensão funcional à avalanche dos enganadores, peritos na grande ciência do ensinar errado. Não é fácil. Ensinar errado e ocultar o que é sabido exige treino.
Observo, em muitas manifestações, percebidas como valiosamente indigenistas, um remorso comunitário ao qual muitas pessoas se entregam como se fossem motivadas por imposições de ordem moral. Seria o inesgotável remorso dos ocidentais. A penitência de uma civilização. A autoflagelação de uma cultura superior. Afinal, por que diabos decidiram promover o não solicitado povoamento de um suposto e intacto paraíso terrestre indígena brasileiro? Pronto, está feito o serviço. É apenas mais uma página da longa lista de culpas históricas imputadas ao léu e sem réu. Mas gerando titulares de remotos créditos sociais resgatáveis no tempo presente.
Em todos esses casos – e são muitos – como já escrevi em artigo anterior, conviria ter certezas que me parecem ausentes, como ausentes estão nos problemas do povoamento e da evangelização do Brasil: a) certeza de não estarmos acusando, julgando e condenando antepassados a quem não concedemos direito de defesa; b) certeza de não estarmos colocando gestos de resgate a serviço de interesses ideológicos e políticos pelos quais, mais tarde, alguém terá que pedir perdão por nós; e c) certeza de não estarmos incorrendo em anacronismo, ou seja, avaliando a conduta dos povoadores de quinhentos anos atrás, com critérios atuais.
Apenas 250 anos nos separam do clássico Dei delliti e dele pene, com o qual Cesare Beccaria apontou a desproporção entre delitos e penas no sistema judicial de seu tempo. Foi por influência desse livro que a Revolução Francesa introduziu a guilhotina, mais misericordiosa para corte de cabeças do que a machadada. Diante desses fatos quase recentes podemos reprovar os portugueses por não haverem trazido a bordo antropólogos, sociólogos, ambientalistas e epidemiologistas?
As releituras e narrativas que a dominante visão de história costuma desenrolar, me levam a indagar: há sentido em desfiar o infindável rosário de mortificações temporãs sobre as quais se poderia cogitar até mesmo na leitura da Bíblia, ou percorrendo os olhos sobre a história de qualquer povo, incluídos os próprios indígenas? Não, não há. Deve ter arrefecido muito o apreço ao batismo e à salvação para que a evangelização de um continente ande suscitando tanto remorso, adaptação e modulação (como talvez propusesse Dias Toffili).
Se for para pedir perdão, por que não o fazerem também, como lembrava Sandra Cavalcanti em artigo publicado há alguns anos, os médicos que substituíram os curandeiros, as famílias novas que não aceitaram mais matar velhos e crianças aleijadas e os cozinheiros europeus que retiraram do cardápio ameríndio os assados de bispos e desafetos?
Não parece adequado subordinar-se o não solicitado Sínodo da Amazônia a uma ótica reducionista que, ao explicar todos os fenômenos históricos como conflitos entre oprimidos e opressores, se põe a serviço de uma ideologia pagã. Entre São José de Anchieta e o cardeal Cláudio Hummes eu fico com o santo das Canárias.
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