por Denis Lerrer Rosenfield
A profunda crise que assola a sociedade venezuelana deve ensinar uma
lição ao continente. O que mais se vê é a demonização rasteira de
Nicolás Maduro, como se fosse ele o maléfico criador desse sistema. Nos
últimos 20 anos observou-se na imprensa brasileira uma perversa
complacência com o desmantelamento do Estado de Direito na Venezuela,
liderado por Hugo Chávez, em nome, bem entendido, do "socialismo do
século 21".
O grande amigo do PT fez o que Lula e Dilma não tiveram êxito em
realizar no Brasil: esgarçar o tecido social até o ponto de ruptura.
Reclamam eles de uma obra incompleta, abortada pelo impeachment!
Neste momento dramático, é importante rememorar alguns pontos
importantes para o debate em torno da situação lastimável em que a
Venezuela se encontra, pois tal situação não se deu da noite para o
dia.
Chávez foi eleito presidente em 1998 com o discurso de tirar o país de
um largo período de crises econômicas e institucionais. Diante do
desgaste generalizado dos partidos políticos tradicionais, prometeu
sanear o país da corrupção, trazendo prosperidade, progresso, direitos e
benefícios sociais. As benesses sociais, como se sabe, foram
distribuídas a torto e a direito com finalidade eleitoreira, sem nenhum
controle fiscal.
Seu discurso, muito comum nas esquerdas latino-americanas, estava
centrado na multiplicação de direitos – sociais, ambientais, indígenas –
e ele acabou sendo saudado como o suprassumo do suposto
"progressismo" no continente. Gozando de enorme prestígio quando de sua
eleição, Chávez logo convocou um referendo para instituir uma Assembleia
Nacional Constituinte. Com ampla aprovação popular, o referendo de
abril de 1999 foi um sucesso retumbante, que viu a população
manifestar-se pela elaboração de uma nova lei fundamental. Foi o início
da destruição da democracia por meios democráticos. A esquerda
latino-americana começava a delirar!
Com o referendo constitucional de 1999, a empreitada chavista
consolidou-se com a Constituição da República Bolivariana, publicada em
15 de dezembro do mesmo ano, que continua vigente. Dentre as muitas
inovações da nova Constituição, dois elementos restam suficientemente
claros.
A carta fundamental colocou, em primeiro lugar, um amplo rol de direitos
fundamentais, na tentativa aparente de resgate de valores morais,
identitários e de união. Na verdade, levava a cabo o solapamento do
Estado de Direito, com o poder político se liberando de qualquer limite.
Foi o estabelecimento do Führerprinzip, o líder político que tudo pode,
acima da própria Constituição.
O perigo que poucos enxergaram à época estava na ausência de freios e
contrapesos eficazes, pois parte considerável da separação de Poderes da
antiga Constituição de 1961 foi eliminada. O mandato presidencial teve
seu período ampliado de cinco para seis anos, agora com a possibilidade
de reeleição imediata. Além de se abrir a possibilidade de o presidente
ficar 12 anos no poder, o Congresso Nacional Venezuelano (antes dividido
entre Câmara dos Deputados e Senado, como no Brasil) foi desmantelado e
substituído pela unicameral Assembleia Nacional.
A ideia que permeava a nova Constituição do chavismo era a de ter um
Legislativo gradualmente enquadrado pela retórica socialista, capaz de
votar emendas constitucionais por maioria simples. Chávez encontrou a
fórmula que precisava para sua ditadura plebiscitária, um sistema
constitucional sempre manobrável, governando por meio de sucessivos
referendos populares.
Chávez elegeu-se para debelar as graves crises econômicas dos anos 80 e
90. Mas esses problemas foram substituídos por outro tipo de crises
políticas a partir do ano 2000, criadas por ele mesmo, em que a solução
apontada era sempre a mesma: referendos populares. A suposta democracia
direta, tão almejada pela esquerda brasileira, foi um dos remédios
constitucionais de que o chavismo lançou mão. O Legislativo foi sendo
progressivamente enfraquecido, tornando-se um apêndice de um Executivo
todo-poderoso. O caminho da ditadura estava pavimentado.
Some-se a esse cenário o desmantelamento gradativo do Judiciário,
aparelhado por partidários do regime, e o cerceamento da liberdade de
imprensa. Tudo isso sob aplausos das esquerdas latino-americanas, pois
Chávez realizou às claras tudo o que muitos líderes socialistas do
continente almejavam.
Como não havia preocupação alguma em defender o liberalismo econômico e
político e a democracia parlamentar, o sistema implementado teve como
fim a destruição do arcabouço democrático. As promessas vazias de um
futuro melhor e mais alvissareiro são parte integrante da ideologia do
chavismo e eclipsaram, para os incautos, a natureza radical do regime.
Com a Emenda Constitucional de 2009, aprovada por referendo popular,
permitiu-se a reeleição indefinida para cargos eletivos, além de se
aumentar o poder discricionário do presidente. Como se tudo isso não
fosse suficiente, muitas das eleições foram fraudadas sistematicamente
pelo Executivo em conluio com o Judiciário bolivariano. Com o
agravamento da situação econômica, causado pelo próprio regime, Maduro
terminou por enveredar para o uso sistemático da violência, da repressão
política e da tortura, tudo em nome, evidentemente, da luta pelo
socialismo e contra o imperialismo!
A crônica desse verdadeiro desastre político tem como final uma nação
estraçalhada. Governando por decretos e escudado por referendos
populares cada vez mais fraudulentos, Chávez e, agora, Maduro cometeram
todo tipo de atrocidades para se manterem no poder. Foram coerentes com o
seu projeto socialista! A "revolução bolivariana", que hoje mais parece
uma piada de mau gosto, consagrou um modelo de opressão que deixaria os
ditadores mais sanguinários com inveja. Tudo sob os aplausos das
esquerdas da América do Sul.
*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS
O Estado de São Paulo
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