Jornalista Andrade Junior

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Reforma ou furor arrecadador

 Ubiratan Jorge Iorio


A reforma tributária recentemente aprovada a toque de caixa pela Câmara mediante expedientes nada recomendáveis — como, por exemplo, o de entregar aos deputados, minutos antes da votação e, portanto, sem tempo para a devida leitura, um calhamaço repleto de emendas — representa um enorme retrocesso diante das reais necessidades do país e será certamente mais um peso a ser suportado por quem produz e trabalha. Apesar dos esforços da extrema imprensa para fazer parecer que é um avanço e que simplifica o sistema tributário, é incontestável que a proposta e as emendas sugeridas são passíveis de muitas críticas, desde as puramente técnicas até as de natureza política e filosófica. Neste artigo, vou me ocupar mais das últimas que, a meu ver, são as mais importantes, uma vez que mostram que, no fundo, o que está em jogo é a liberdade dos brasileiros — e a liberdade é um bem precioso demais, de que não podemos abrir mão, nem que seja de um simples milímetro.

Antes de qualquer outra coisa, onde já se viu fazer uma reforma tributária sem antes fazer uma reforma administrativa? Como saber de quanto dinheiro você vai precisar para alimentar um animal de estimação, sem saber se o bicho é um gatinho ou um tigrão? Que tipo de Estado os pagadores de impostos vão ser obrigados a sustentar? Um enxuto, que se limite a atividades essenciais, ou outro que seja uma coleção pavorosa de adiposidades, como o que povoa as cabeças rupestres dos integrantes do atual governo? Um que seja desenhado — como deve ser — para servir aos cidadãos ou outro usado para servir-se deles sem um pingo de vergonha e, mais do que isso, para escravizá-los com um projeto totalitário populista?

A verdade é que essa reforma conjuga apenas um verbo em todos os modos e tempos: “arrecadar”. A ideia é tomar dinheiro dos “contribuintes”, um eufemismo despudorado usado para descrever quem arca com os impostos. O propósito, puro e simples, é taxar, tributar, tarifar, coletar, criar imposto, elevar alíquotas, onerar, cobrar, porque do outro lado do balanço que precisa necessariamente ser fechado a ordem desavergonhada é gastar, esbanjar, dissipar, desperdiçar, torrar, malbaratar. Tudo isso em nome de um projeto político totalitário de poder a ser executado em consonância com a agenda globalista, que subtrai a liberdade das pessoas e as coloca a serviço do Estado e dos donos do planeta.

A reforma, tal como se apresenta antes de ser analisada no Senado, é uma proposta de aventura autoritária, que não leva em consideração, já nem digo, por óbvio, os empecilhos sobre a ação humana individual, mas as necessidades específicas de cada região do país e sua enorme diversidade, típicas de um território continental. Só nos resta esperar os senhores senadores enxergarem o atraso que essa aventura imporá ao Brasil e a rejeitarem — bem, reconheço que estou deixando o realismo de lado e sonhando um pouco.

Nunca é demais lembrar que a ação humana que movimenta as atividades econômicas é um processo ininterrupto e atomizado, formado por um número extraordinariamente grande de escolhas individuais, muitas das quais com componentes fortes de subjetividade, que se processam em cada um dos 5.570 municípios que compõem o Brasil. Essa ação acontece, mais do que dentro de cada um desses municípios, em cada escritório, fábrica, fazenda, galpão, sala, rua, quarto, praça, em cada cabeça, enfim. Ora, não é preciso ser nenhum gênio para perceber que esse dado irreversível da vida real não combina com modelos centralizados.

A ser aprovado definitivamente o estrupício que a Câmara produziu, os prefeitos (e, também, os governadores) perderão os recursos tributários, e o sistema federativo vai, simplesmente, para o espaço. Quem vai definir para onde vão os recursos arrecadados é, simplesmente, um órgão central (Conselho Federativo), o que remonta, incrivelmente, à velha União Soviética, com todos os problemas que isso significa, da ineficiência econômica e administrativa à concessão de benesses para aliados políticos e aos maiores incentivos para atos de corrupção. É indesculpável que ainda haja quem acredite nesse tipo de governança centralizada, depois de um século de fracassos.

Quem conhece a mentalidade dos atuais governantes não terá nenhuma dificuldade para antecipar como deverá ser a composição desse Conselho Federativo: sindicalistas, grandes empresários amigos do governo, ONGs, “entidades”, artistas, líderes de “minorias” e demais “representantes da sociedade civil”. E igualmente também se pode antever facilmente em que acarretará o poder discricionário desse conselho stalinista que vai administrar a parcela da tributação que caberá a municípios e Estados. O que será da vida dos prefeitos? Como serão suas relações com os membros desse Conselhão? Pode-se imaginar o que vai rolar, não?

Alguns tópicos da aberração que foi enviada ao Senado chamam a atenção. Primeiro, a indefinição sobre o patamar de cobrança dos dois impostos que futuramente vão absorver cinco dos hoje existentes: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). A fase de transição da reforma tributária prevê um inacreditável “período de testes” para ir calibrando as alíquotas. Claro, as cobaias serão os pagadores.

Segundo, por que cargas d’água tributar menos itens da cesta básica, se o objetivo declarado estrepitosamente pelo governo é “ajudar os pobres”? Por que simplesmente não isentar todos os produtos? Aliás, a própria definição do que é e do que não é “básico” é necessariamente arbitrária, porque os consumidores têm preferências diferentes. A propósito, já que eles falam tanto em governar para os pobres, não cabe perguntar por que terminaram com a isenção das compras internacionais de até US$ 50, as famosas “blusinhas”?

O terceiro tópico é o do cashback: ora, francamente, se o governo reconhece que vai ter que devolver amanhã os impostos cobrados a mais no consumo às famílias com renda de até meio salário mínimo (cerca de R$ 700) por pessoa, por que então cobrar hoje? O racional não seria simplesmente não cobrar, para não ter que devolver? Além disso, por que R$ 700, e não qualquer outro valor? Que precisão “científica” é essa? E, ainda, em se tratando do furor arrecadador do governo atual, não parece plausível apostar que o cashback vai ficar só no cash, sem o back?

Em quarto lugar, temos o “imposto do pecado” (imposto seletivo), bem ao sabor da agenda globalista. A prática de desestimular o consumo de bens que “fazem mal” à saúde e ao meio ambiente não é nova, mas vem sendo utilizada arbitrária e desmesuradamente, principalmente na Europa, para atender à agenda política “progressista” da ONU e dos que se acham donos do mundo. Como se sabe, os agricultores da zona da União Europeia vêm protestando há meses contra esse tipo de interferência. Querem trazer isso para cá?

Não é difícil prever que o impacto sobre as pequenas e médias empresas do novo furdunço tributário será devastador, uma vez que essas empresas, que são o coração da nossa economia, terão pela frente uma carga ainda maior e isso, como se sabe, asfixia a inovação, o empreendedorismo e o livre mercado. O sistema penalizará mais do que o atual quem trabalha e produz e não tem cacife para fazer lobbies como as grandes corporações, especialmente as que são comandadas por amigos e amigos de amigos dos que estão no poder.

É também bem perceptível que a barafunda tributária vai provocar um crescimento do setor público vis-à-vis o privado, na contramão do que a economia do país precisa; que vai prejudicar a empregabilidade; que vai ser um estorvo sobre o setor de serviços; que os profissionais liberais, como médicos, contadores, advogados, dentistas, economistas e outros, deverão pagar o dobro do que atualmente pagam de impostos; e que, ao fim e ao cabo, a classe média será a mais penalizada.

O país urge por uma reforma que simplifique de verdade, sem retórica, mas categórica, que distribua da maneira mais justa possível o peso dos tributos e que respeite verdadeiramente a autonomia dos entes federativos

Há, ainda, um aspecto muito importante a ser ressaltado, que é o da convivência de dois sistemas tributários até o ano de 2032. É vão o esforço dos veículos de comunicação para levar a crer que teremos uma simplificação do sistema. Isso não é verdade, pois as empresas precisarão manter seu atual mecanismo de controle juntamente com o novo regime, ou seja, ao manicômio tributário já existente a proposta do governo acrescenta um novo hospício, repleto de artigos e disposições, o que acarretará com toda a certeza para as empresas a necessidade de aumentar os departamentos especializados em impostos.

Portanto, para manter os dois sistemas juntos até 2032, a vida das empresas — que, em termos tributários, já há muito tempo não tem sido fácil — será ainda mais difícil. Como disse recentemente o querido amigo Ives Gandra da Silva Martins: “Estou falando do mandato do atual presidente, daquele que vai substituí-lo de 2027 a 2030 e do outro que presidirá o Brasil a partir de 2030. Durante todo esse tempo teremos os dois sistemas juntos. Alerto, pois, para a insegurança jurídica que tudo isso trará”.

Essa duplicação manicomial que estão chamando de reforma tributária não reforma coisa nenhuma; antes, deforma o que já é disforme e desfigura o que já é distorcido há muitos anos. É um erro monumental, muito malconcebida, confusa, pessimamente executada e revela enorme ignorância e desdém pela realidade econômica, cultural e social do Brasil. O país urge por uma reforma que simplifique de verdade, sem retórica, mas categórica, que distribua da maneira mais justa possível o peso dos tributos e que respeite verdadeiramente a autonomia dos entes federativos, vale dizer, que leve em consideração o federalismo e a subsidiariedade. Caso contrário, o máximo que se poderá dizer a partir de 2032 é que se trocou o velho manicômio tributário por um mais novo.










PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/economia/reforma-ou-furor-arrecadador/

0 comments:

Postar um comentário

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites More