Judiciário em Foco
“A missão de um político não é agradar a todo mundo”. A frase, cunhada por Margareth Thatcher, costumava ser proferida pela primeira-ministra britânica em réplica aos críticos ferozes de suas políticas impopulares, como, por exemplo, as privatizações em massa, que, a exemplo dos remédios amargos, eram de difícil aceitação, embora cruciais à recuperação do país. Por óbvio, as palavras da Dama de Ferro não deixam de soar um tanto hiperbólicas, pois nenhum agente público é capaz de levar a cabo seus melhores projetos sem uma robusta base de apoio dos universos político e social. Em cenários de rejeição absoluta, sequer se mantêm no poder.
Em sua duríssima sustentação oral, o desembargador aposentado Sebastião Coelho, ora advogado do primeiro réu julgado pelos atos do 08.01, após descortinar todas as graves irregularidades do processo contra seu cliente, afirmou, sob os olhares flamejantes do ministro Alexandre de Moraes, que os supremos magistrados seriam “as pessoas mais odiadas deste país.[1]” Ao que o togado retrucou, sem pestanejar: “esses extremistas que não gostam do STF são a minoria.”[2] Será que, em vez da repartição clichê do país entre “extremistas” e “democratas”, Moraes poderia ter invocado a fórmula Thatcher em seu favor?
Por se sentir um político, a frase bem viria a calhar e, diante dos incautos, a referência a um símbolo indiscutível de defesa das liberdades talvez até suavizasse a imagem do togado como repressor-censor. Porém, contrariamente à líder eleita no século passado, Moraes possui a certeza de ser admirado pela ampla maioria. Pelo menos, pela maioria que “conta” aos seus olhos, pois, à luz dos critérios alexandrinos, os outros, ou seja, os que ousem discordar minimamente de sua processualística inovadora não merecem sequer ter voz. Tanto assim que têm sido censurados, presos por “crimes de opinião”, ou ambos.
Como se não bastassem todas essas inovações, acabamos de presenciar o primeiro julgamento assumidamente político da nossa História recente, durante o qual os réus foram submetidos ao crivo de magistrados incompetentes para o exame de suas condutas, e sem a apreciação de cada uma destas. Em cenário espetacularizado pela PGR e pelos togados, casos de crime de dano foram transformados em tentativas de abolição do estado de direito e delitos correlatos – sem armas ou treinamento militar -, e pessoas aludidas sob os rótulos de “golpistas” e análogos foram desumanizadas junto à opinião pública, sem menção sequer aos itens por elas supostamente depredados. Na prática, um autêntico linchamento no que deveria ser uma corte de justiça!
Como fundamento à impossibilidade de definição de cada pretensa conduta delitiva, os juízes supremos, na esteira da PGR, ainda classificaram os delitos do 08.01 como crimes multitudinários, designação técnica para delitos cometidos sob a influência de multidão em tumulto. Distantes do cidadão, seja pela posição de mando inerente à toga, seja pelo uso indiscriminado do juridiquês, “idioma” de acesso restrito, esqueceram, porém, de esclarecer ao público que, na forma do disposto no Código Penal, a prática de ilícitos sob a influência da turba sempre atenua a pena[3]. Assim, além de inverterem o sentido literal de nossa legislação criminal, os protagonistas da sessão, como de hábito, voltaram a desrespeitar a Constituição, que assegura aos indivíduos o direito ao julgamento justo, mediante a análise individualizada de suas condutas.
O resultado não poderia ter sido mais desastroso: longos anos de prisão (o primeiro réu foi sentenciado a 17 anos!), multa e R$ 30 milhões por supostos danos morais coletivos. Ora, a população em geral, apesar de jamais ter ouvido falar nos tais crimes multitudinários, sabe, pelo noticiário, que uma pena de quase vinte anos ultrapassa, de muito, várias condenações impostas pelo mesmo Supremo a delinquentes perigosos, como, por exemplo, os réus no mensalão (J. Dirceu, 10 anos e 10 meses, e J. Genoíno, 6 anos e 11 meses), e até penas para homicídios impactantes (caso Elize Matsunaga[4]). Tampouco é necessário qualquer conhecimento jurídico para intuir que a obrigatoriedade de arcar com R$ 30 milhões corresponde a reduzir alguém à insolvência, ou, em termos mais claros, à vexatória impossibilidade de acréscimo patrimonial, pois qualquer aquisição se destinará ao pagamento da condenação milionária. Não seriam essas formas de penas cruéis textualmente banidas da nossa Constituição?
No auge da politização do que se esperaria ser um assunto judicial, ainda testemunhamos uma discussão “acalorada” entre os ministros Moraes e Mendonça sobre a forma como o Planalto teria sido invadido. Após a manifestação, por Mendonça, de certa estranheza diante do “rigor de cuidado e vigilância que deve haver lá”, Moraes interrompeu seu colega em tom exaltado, criticou a suposta negligência de quadros da polícia militar do Distrito Federal (cujas condutas ainda estão sob apreciação) e vestiu a roupagem de defensor do ministro da justiça Flávio Dino, cuja responsabilidade excluiu por completo. Tudo assim, de chofre, sem provas e sem observância aos ritos, como se estivessem ambos em um bate-boca em mesa de bar. Só que esse “bar” específico, além de muito oneroso aos cofres públicos, dispõe do poder de encarcerar e soltar, de arruinar patrimônios e reputações, e até de criar e destruir narrativas.
Ora, como será que todas as irregularidades discutidas neste espaço e culminadas no julgamento em questão repercutem na mente do cidadão comum? Este, na maioria das vezes alheio e até avesso à política, pouco ou nada informado, já costuma trazer, da sua experiência diária, uma impressão negativa do braço estatal judiciário. A demora na entrega de decisões sobre conflitos corriqueiros, as despesas associadas à busca de uma providência judicial e até a insegurança vivida nas grandes capitais são facilmente percebidas, pelo indivíduo leigo, como incapacidade de togados de oferecerem resoluções céleres e satisfatórias aos litígios.
Enquanto espectador do espaço público, esse mesmo cidadão tem presenciado casos que ele pode considerar pitorescos, como, por exemplo, a condenação e a “descondenação” de figurões da política, assim como a defesa, por togados, da liberdade de expressão, e a restrição à tal liberdade, pelos próprios magistrados, sob a nobre alegação da salvaguarda da democracia. São tantas e tão profundas as contradições que até mesmo os indivíduos mais modestos e alérgicos ao debate político se veem em dúvida sobre em quem ou em qual versão acreditar.
Assim, é possível que não estejamos nem diante do “agrado” referido por Thatcher nem do “ódio” proclamado pelo ex-desembargador. Afinal, ambos são afetos, que nenhum de nós costuma nutrir em relação a figuras públicas, com as quais não convivemos. Antes, talvez estejamos lidando com um abismo de proporções bem mais trágicas, que se resume à total falta de confiança naqueles que decidem por último. Confiança em sua forma de nomeação. Confiança em seus vínculos com as pessoas beneficiadas e prejudicadas por suas decisões. Confiança em sua atuação nada transparente e repleta de lacunas e ambiguidades.
E, se assim for, qual será o porvir de uma sociedade que desacredita e deslegitima o poder do qual, nas palavras de Tocqueville, emana a “força (que) foi, desde sempre, a maior garantia que se pudesse oferecer à autonomia individual”? No esvaziamento dessa autoridade, quem ocupará o espaço decisório máximo? As vinganças privadas? Os ditames das narcomilícias? Responda em silêncio, e, de preferência, sozinho, pois, em nossos dias, suas manifestações podem acarretar consequências nada desejáveis.
[1] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/quem-e-o-advogado-que-chamou-ministros-do-stf-de-pessoas-mais-odiadas-do-pais/
[2] https://www.metropoles.com/colunas/paulo-cappelli/minoria-stf-rebate-moraes
[3] Art. 65 – São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (…) III – ter o agente: (…) e) cometido o crime sob a influência de multidão em tumulto, se não o provocou.
[4] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/03/22/stj-reduz-para-16-anos-a-pena-de-elize-matsunaga-condenada-por-matar-e-esquartejar-marido-em-sp.ghtml
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