por Flávio Gordon
“Os enigmas de Deus são mais satisfatórios que as soluções do homem.” (G. K. Chesterton)
Recentemente, o jornalista Paulo Figueiredo, o coronel da reserva Gerson Gomes e o advogado e presbítero Wladymir Filho deram o pontapé inicial numa empreitada que promete ser de grande valor cultural: o estudo e a reflexão sobre o texto bíblico, transmitido ao vivo pelo YouTube, sempre aos domingos.
O primeiro episódio da série foi ao ar no último dia 17, e os três comentaristas se dedicaram a ler, comentar e discutir em pormenor os primeiros versículos do livro do Gênesis, que, como se sabe, contêm a versão judaico-cristã da criação do mundo e do homem. Especificamente, a live foi inteiramente dedicada ao texto de Gênesis 1,1, cujo caráter historicamente inovador – ou, com perdão do palavrão, revolucionário – foi destacado. No original em hebraico, lê-se que “Bëreshyt bårå Elohym et hashåmaym vëet håårets” (“No princípio, Deus criou o céu e a terra”).
Wladymir Filho lembrou que, ao contrário do contexto religioso do mundo pagão, no qual as cosmogonias (as narrativas sobre a criação do mundo) tendiam a ser precedidas por teogonias (narrativas sobre o surgimento dos deuses), o Gênesis não contém uma teogonia. A criação aí é descrita a partir de um Deus que, não tendo sido criado, é pressuposto existir eternamente. Diferentemente do que se passava em boa parte do mundo antigo, Elohym não é tido por consubstancial e contemporâneo às coisas criadas, mas transcendente a elas. A perspectiva é sub specie aeternitatis, e não ainda (viria a ser mais tarde) sub specie Spinozae – para citar Nietzsche sobre o Deus imanente de Spinoza.
Não é razoável questionar o que o Criador estaria fazendo antes da criação, uma vez que o conceito de tempo não se aplica a Ele, que é eterno
Esse tópico é, por si só, interessantíssimo. Remete-nos a Santo Agostinho, talvez o primeiro pensador a resolver um persistente paradoxo teológico-científico. Se antes de hoje houve ontem; se antes de ontem houve anteontem; se antes de anteontem houve anteanteontem e assim regressivamente, isso implicaria um recuo indefinido ao passado, dando-nos a imagem de um universo que sempre existiu. Mas, em sendo o universo assim infinito, como Deus poderia tê-lo criado? Decerto não poderia. Se foi mesmo Ele quem o criou, o universo deve necessariamente ter tido um começo. Nesse caso, o que havia antes desse começo? Ou, por outra: o que estaria Deus fazendo no instante imediatamente anterior à criação?
O que a resposta de Agostinho teve de simples teve também de genial, a ponto de soar hoje como óbvia: Deus criou o tempo junto com o universo. Ou, como diria um ditado anglófono: Once upon a time there was no time. Ora, não é razoável questionar o que o Criador estaria fazendo antes da criação, uma vez que o conceito de tempo não se aplica a Ele, que é eterno – não no sentido genérico de algo que dura para sempre (infinito), mas no sentido técnico específico de algo que se situa fora e para além do tempo. Como formulou Boécio, o eterno é aquilo que detém a posse plena, imediata e simultânea de todos os instantes do tempo. Ou, como aprendeu Moisés diante da sarça ardente: Deus é Aquele que é.
No ambiente religioso anterior ao judeu-cristianismo, prevalecia, mutatis mutandis, a seguinte situação: a transposição de uma cosmologia geral para uma determinada estrutura social, frequentemente tida por encarnação da primeira. Na medida em que a ordem social manifestava a ordem cósmica, não havia possibilidade de um acesso direto à transcendência sem passar pela intermediação da natureza ou da sociedade.
O judeo-cristianismo rompe essa mediação. Por um lado, dessacraliza os fenômenos naturais. Já em Gênesis 1,16, por exemplo, o sol e a lua – tratados como divindades por outros povos – são descritos simplesmente como dois “luzeiros”. Como mostra o egiptólogo e especialista em religião comparada Jan Assmann – em trabalhos como Of God and Gods: Egypt, Israel, and the Rise of MonotheismeThe Price of Monotheism –, a cosmologia mosaica é essencialmente anticosmoteísta. Por outro lado, o judeo-cristianismo dessacraliza a sociedade, instituindo com isso a soberania da consciência individual autônoma e oferecendo aos homens um acesso direto à Revelação.
Com efeito, nota-se que o cristianismo é simultaneamente supracósmico, universalista e individualista. Não se dirige a uma comunidade particular, nem a uma sociedade genérica, mas às almas humanas individuais (epitomizadas por Jesus de Nazaré), desafiando com isso a autoridade civil e os cultos estatais. Desafiando em última análise as próprias noções tradicionais de política, sociedade, história e natureza. Como escreveu em The Rise of Western Christendom o historiador Peter Brown, especialista em história do cristianismo: “Acima de tudo, os cristãos adoraram um Deus que, em muitos dos seus aspectos, estava situado acima do espaço e do tempo”.
É claro que, antes do surgimento do cristianismo propriamente dito, haviam brotado aqui e ali algumas sementes de sua inovação cosmológica e antropológica. Em A Nova Ciência da Política, Eric Voegelin faz referência a um momento da história, localizado aproximadamente entre os anos 800 e 300 a.C., que o filósofo Karl Jaspers denominou de “período axial”. Desenvolveram-se nesse período conceitos como os de Tao (na cultura chinesa clássica), Brahman (na tradição védica do hinduísmo), Yahweh (entre os hebreus) e Agathon (na filosofia platônica). Todos eles, de um modo ou de outro, remetiam à ideia de uma verdade última e transcendente, independente das verdades coletivas.
O cristianismo é simultaneamente supracósmico, universalista e individualista. Não se dirige a uma comunidade particular, nem a uma sociedade genérica, mas às almas humanas individuais, desafiando com isso a autoridade civil e os cultos estatais
Isso era um desafio à concepção de verdade comum aos impérios cosmológicos do passado (China pré-confucionista, Egito, Babilônia, Assíria etc.), onde a sociedade como um todo era tida como a própria manifestação ou encarnação da ordem cosmológica. O “período axial” foi marcado pela intensa atividade intelectual de homens como Sidarta Gautama (Buda), Confúcio, Heráclito, Sócrates, Platão e o profeta Isaías, entre outros. Cada um a seu modo, todos testemunharam a verdade da transcendência e a soberania da alma individual em sua busca para apreendê-la.
Surgem, pois, duas visões de mundo rivais, uma que postula uma verdade sociocósmica (coletiva) e outra que introduz o conceito de verdade metafísica transcendente, independente da sociedade, e que só pode ser buscada pelo espírito individual do profeta, místico ou filósofo. Por terem confrontado a comunidade e questionado sua autoidolatria, o historiador Arnold Toynbee batizou-os de “filósofos autossuficientes”. Também Henri Bergson já havia destacado o mesmo momento histórico, cunhando os conceitos de “sociedade fechada” e “sociedade aberta” (de onde Popper extraiu a sua utopia liberal) para contrastar as duas visões de mundo. E, inspirando-se em Bergson, Voegelin denominou a passagem histórica de “abertura da alma”.
Embora tenha surgido independentemente em diversas civilizações, diz Voegelin, essa novidade teve sua mais completa elaboração na Grécia, com Sócrates e Platão. Contrapondo-se a Protágoras, Platão ensina em As Leis que Deus – e não o homem ou a sociedade – é a medida de todas as coisas. Ou seja, a realidade material empírica (acidental) não pode ser medida de forma imanente, com referência a si própria, mas apenas por uma verdade absoluta (necessária), acessível ao filósofo cuja alma se mantenha aberta à transcendência.
Essa “abertura da alma” é o tema central do famoso Mito da Caverna (Livro VII da República), que narra a conversão (periogage) do filósofo e sua ruptura com a ilusão da existência humana (materializada, na visão platônica, na sociedade sofística de Atenas) em direção ao mundo das Ideias. Antes de Platão, os deuses gregos não eram outra coisa que a corporificação de forças cósmicas, que andavam, por entre os homens, nos templos e nas praças. O Deus platônico – o Bem supremo (Agathon) – torna-se Absoluto. Inacessível ao homem social, ele só pode ser conhecido pela intelecção individual do filósofo.
Sócrates jamais pretendeu fundar uma religião ou culto público. O que ele fez foi dar testemunho, enquanto indivíduo humano, da existência de uma verdade universal transcendente à opinião (doxa) comum e à verdade coletiva. Sócrates é o protótipo do que Aristóteles viria a chamar de spoudaios, o homem maduro, que realiza plenamente as capacidades de sua natureza humana. Ora, o que Sócrates e Platão propuseram originalmente a um grupo restrito de filósofos foi universalizado pelo cristianismo a todos os homens. A partir daí, a transcendência deixa de ser apenas metafísica e passa a ser soteriológica. Como resume o historiador Fustel de Coulanges:
“A vitória do cristianismo assinala o fim da sociedade antiga (...) Com o cristianismo, não só o sentimento religioso se avivou, mas tomou ainda expressão mais elevada e menos material (...) O divino foi devidamente colocado fora e acima da natureza visível (...) A religião deixou de ser exterior; residiu sobretudo no pensamento do homem. A religião deixou de ser matéria; tornou- se espírito (...) O cristianismo trouxe ainda outras inovações. Deixou de ser a religião doméstica de determinada família, a religião nacional de qualquer cidade ou de qualquer raça. O cristianismo não pertencia nem a uma casta, nem a uma corporação. Desde o início, chamou a si toda a humanidade.”
Flávio Gordon, Gazeta do Povo
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