Jornalista Andrade Junior

domingo, 24 de setembro de 2023

O furor arrecadador do atual governo

 Ubiratan Jorge Iorio 


No Brasil inacreditável de hoje, pagamos — e vamos pagar ainda mais — ao pedreiro para que faça uma bela casa, mas ele nos entrega, quando muito, um barraco de palha.

Cobradores de impostos — conhecidos no Império Romano como publicanos — nunca foram vistos com simpatia e bons olhos. Muitos registros antiquíssimos os descrevem como pessoas detestáveis, insaciáveis em sua sanha de avançar sobre os bolsos e as bolsas dos cidadãos, muitas vezes extorquindo comerciantes para enriquecer. Despertavam ojeriza geral e eram tratados comumente com desdém.

Não à toa, a história da civilização está repleta de revoltas, revoluções e guerras provocadas por cobranças extorsivas de impostos. Aqui mesmo tivemos, em 1720, a Revolta de Vila Rica, contra o Quinto do Ouro, liderada por Filipe dos Santos, que antecedeu a Inconfidência Mineira, uma conhecida conspiração contra a derrama determinada em 1789 pela coroa portuguesa. Na época, foi ordenando a cada produtor de ouro que pagasse 100 arrobas do metal por ano a título de imposto e inclusive autorizando soldados a invadir as casas e a retirar os bens dos ocupantes que não tivessem cumprido as exigências, até que se completasse o valor estabelecido.

Poucos anos antes, em 1773, nos Estados Unidos, trabalhadores disfarçados de índios, liderados por Samuel Adams, se revoltaram contra o pagamento de uma taxa sobre a importação de chá estabelecida pela coroa britânica e atiraram ao mar perto de 45 toneladas do produto, armazenadas em um navio atracado no Porto de Boston. O episódio ficou conhecido como Boston Tea Party e foi replicado em várias cidades do país, gerando forte reação britânica e contribuindo para o início de uma guerra que culminou, em 4 de julho de 1776, com a Declaração de Independência, assinada em Filadélfia.

Até mesmo grandes líderes conservadores e defensores ardorosos da economia de mercado, como Margaret Thatcher, tiveram problemas sérios com impostos. Em 1989, ela introduziu a Community Charge, que ficou conhecida como poll tax, uma taxa comunitária cobrada de acordo com o valor de aluguel de cada casa e com um porcentual fixo incidindo sobre cada adulto residente. Ingleses, escoceses e gauleses — especialmente os de famílias numerosas — uniram-se contra o novo imposto, e isso acabou levando a Dama de Ferro, já então às voltas com a queda de popularidade por sua decisão de não aderir à imposição do euro, a não obter os votos suficientes para impedir o segundo turno nas eleições de seu partido e a renunciar, em novembro de 1990, ao posto de primeira-ministra.

A repulsa a impostos é natural e é parte inseparável da condição humana, tendo em vista que qualquer forma de tributação nunca deixa de ser uma ação coercitiva, uma injunção que macula os direitos de propriedade, reduz a liberdade e substitui ações voluntárias pela coerção do Estado, que é a única organização legalmente autorizada a usufruir compulsoriamente de receitas. Essa autorização legal — uma cessão parcial de liberdade em troca de uma suposta proteção contra agressões aos direitos individuais — passou a ser outorgada quando as sociedades descobriram, mediante o processo evolutivo espontâneo dos usos e costumes, que a vida em grupo proporcionava vantagens para todos, em decorrência da maior eficiência associada à divisão do trabalho. Aprendeu-se, assim, que era preciso existir algum ator que estivesse acima dos interesses particulares e que se preocupasse em sancionar ou estabelecer normas de justa conduta, com vistas a garantir os direitos básicos à vida, à liberdade e à propriedade. Ou seja, entendeu-se que a existência do Estado — e, portanto, de tributos para sustentá-lo — era necessária para o dito bem comum.

Aceitar isso é semelhante a reconhecer que, ao contratarmos um pedreiro para fazer uma obra em nossa casa, é justo, primeiro, remunerá-lo por seu trabalho; segundo, fiscalizá-lo para ver como o está executando e se está respeitando o prazo acertado; e terceiro, se, além da remuneração combinada, está usando corretamente o dinheiro que lhe entregamos para comprar areia, cimento, madeira, tijolos, tinta e qualquer outro material necessário. O contratante tem o dever de pagar e o direito de fiscalizar, e o contratado tem o direito de cobrar e o dever de fazer bem o serviço.

No Brasil inacreditável de hoje, pagamos — e vamos pagar ainda mais — ao pedreiro para que faça uma bela casa, mas ele nos entrega, quando muito, um barraco de palha. O ministro da Fazenda vem agindo quase em tempo integral como um publicano insano sem qualquer pudor de avançar em nossa carteira e no governo a que serve como um pedreiro que nos cobra muito caro sem nos dar qualquer chance de barganha, que raramente entrega a obra, que a executa mal, que gasta muito mais material do que o necessário, que favorece amigos ao comprar insumos, que não raramente nos furta e que, para completar, quando eventualmente reclamamos ou deixarmos de pagá-lo, ainda nos multa pesadamente e pode até nos prender.

A aceitação pela sociedade de algum grau de coerção pressupõe a necessidade de alguma proteção social contra as tentativas inerentes ao Estado de aumentar a coerção. Em outras palavras, a autorização para qualquer ação coercitiva restritiva de nossa liberdade, como soe ser a obrigação de pagar impostos, deve ser sempre a exceção e jamais a regra.

Na verdade, as políticas tributárias modernas de viés progressista são um jogo viciado, em que os governos prometem supostos benefícios para determinados grupos, em detrimento dos demais indivíduos, em um processo fomentador de vantagens para partidos políticos e tecnocratas. Sua justificação “científica” é frágil, porque os chamados princípios da eficiência e da equivalência, a rigor, não podem ser aplicados em sua essência. Sendo assim, a tributação, na sua configuração atual, embora legal, carece de legitimidade.

O furor arrecadador do atual governo brasileiro é impressionante. Infelizmente, se no passado os publicanos — conhecidos também como exatores — eram malvistos pelos cidadãos, nos tempos atuais muitos não se dão conta de que, quando o Estado cobra R$ 1 de tributo, isso significa que haverá menos R$ 1 em posse de quem produziu o valor equivalente a esse real, mediante esforço, inteligência, dedicação, trabalho e suor. Parece que os pagadores de impostos atuais — eufemisticamente designados como “contribuintes” — são muito mais conformados do que seus antepassados, aceitando passivamente a exploração de que são vítimas.

Muitos deles acreditam piamente que, ao pagar seus impostos, taxas e emolumentos, estarão de alguma forma contribuindo para o bem comum, quando, na verdade, os recursos que lhes são subtraídos pelos exatores de plantão destinam-se, em parte substancial, a manter estruturas superdimensionadas de Estado, ineficientes e, muitas vezes, corruptas. O Estado moderno é um exator impostor, porque pratica um embuste — um ato profundamente imoral —, o de arrecadar segundo oblações eleitoreiras e gastar segundo compulsões politiqueiras.

Para justificar o logro, governos socialistas — como o brasileiro — valem-se invariavelmente dos surrados argumentos de que caberia ao Estado a “indução” do desenvolvimento da economia e da sociedade, a “distribuição” da renda e da riqueza, a geração de empregos e até o controle dos costumes. É o Estado Faz-Tudo, que enaltece a gastança, condena a poupança e promete distribuir resultados sem exigir esforços. Como dizia minha saudosa sogra ítalo-mineira, “isso custa dinheiro”, além de — acrescento — impor ônus gigantescos às gerações futuras, em termos de endividamento. Esse desregramento é ineficiente e, ainda, profundamente imoral.

Muitos bons artigos têm sido escritos a respeito do projeto de reforma tributária aprovado na Câmara e que ora tramita no Senado, por isso limito-me a frisar o que diversos economistas bem formados vêm afirmando: que a estrovenga vai aumentar a carga tributária, que só vai simplificar a estrutura fiscal na aparência, que vai aumentar (ainda mais) a concentração de receitas na esfera federal e que tem como objetivo quase que exclusivo arrancar dinheiro dos taxpayers para bancar um projeto político que pressupõe um Estado gigantesco.

De acordo com o Tesouro Nacional, a carga tributária no Brasil foi de 33,71% em 2022. Em meados dos anos 1980, no governo de Sarney, era de 21,2%. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), os brasileiros estão trabalhando quase o dobro de horas em 2023 para cumprir com suas obrigações tributárias, comparativamente às décadas de 1970 e 1980. O pagador de impostos médio precisou se dedicar até o dia 27 de maio, ou seja, 147 dias, exclusivamente para honrar os tributos devidos até dezembro.

Ainda de acordo com o Tesouro Nacional, da carga total de 33,71% do PIB, 22,78% do PIB são tributos federais; 8,59% do PIB, estaduais; e apenas 2,34% do PIB, municipais. A reforma, se aprovada, vai aumentar a centralização da arrecadação.

O estudo Quantidade de normas editadas no Brasil: 34 anos da Constituição Federal de 1988, do IBPT, mostra que as empresas brasileiras devem cumprir, em média, 4.869 normas referentes ao pagamento de tributos, que correspondem a um inacreditável desfile de normas e regulamentações: são mais de 54 mil artigos, 127 mil parágrafos, 407 mil incisos e 53 mil alíneas. O hospício é tal que, se fossem impressas em papel A4, com fonte Arial, tamanho 12, e postas em fila, a parafernália tributária totalizaria, segundo os autores do estudo, um segmento de reta de aproximadamente 6,6 quilômetros. O projeto de reforma vai agravar o problema, intensificando esse labirinto, uma vez que durante alguns anos as duas legislações vão coexistir.

Uma prova de que os publicanos do PT enxergam de maneira errônea a questão das contas públicas está em uma declaração recente do presidente do Brasil, quando, com aquele ar de superioridade e fúria simulada que lhe é peculiar afirmou que “o Estado que cobra pouco não pode ser forte”. Sua assertiva não causa nenhum espanto; o que assusta são algumas reações comuns a esse tipo de visão, que podem ser frequentemente detectadas na mídia e também, paradoxalmente, entre muitos dos que se dizem defensores do livre mercado.

E também não chegam a estarrecer as declarações absurdas do chefe dos publicanos, Haddad, sobre a suposta “necessidade social” de taxar estoques, como patrimônios e heranças, bem como seus ensaios no sentido de fazê-lo. Comunistas de sua estirpe sempre detestaram o sucesso alheio e fomentaram a inveja para criminalizá-lo e puni-lo. Em seu desvairado devaneio, ricos são ricos porque existem pobres, e pobres são pobres por existirem ricos; logo, tratam de empobrecer os ricos para todo mundo ser pobre.

É bom ressalvar, já que vivemos tempos estranhíssimos, que este artigo não está incitando os contratantes do pedreiro a brigar com os publicanos, nem a alguma revolta ou tampouco a nenhum ato “antidemocrático” ou “golpista”. Só pretende afirmar que estamos cansados de ser explorados pelo pedreiro. Simplesmente, não dá mais. Com a palavra, o Congresso, cuja existência, afinal, só se justifica se realmente representar o pagador de impostos, e não o publicano insano e o pedreiro trambiqueiro.

*Artigo publicado originalmente na página da Revista Oeste.




















PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/economia/o-furor-arrecadador-do-atual-governo/

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