Ubiratan Jorge Iorio
É impressionante como, não poucas vezes, o óbvio — até mesmo quando é ululante — precisa ser explicado. Prova incontestável disso é a expressão função social da terra. Chega a ser patético e desanimador precisar esclarecer para muitas pessoas que tudo — sim, rigorosamente tudo! — o que existe em uma sociedade possui uma determinada finalidade e que, portanto, função social é uma redundância, uma prolixidade somente explicada por razões políticas e ideológicas. Mas, aos olhos das massas, a ideologia parece ter a capacidade de transformar pleonasmos em poesia heroica.
A palavra “social” possui um encanto semelhante ao do som da flauta daquele famoso personagem do conto dos irmãos Grimm que, contratado pelos habitantes de Hamelin, hipnotizou com sua música todos os ratos da cidade e os afogou no Rio Weser. Trata-se de um vocábulo revestido de magia, sedução e fascínio, que funciona como uma senha que, uma vez recitada, faz imediatamente subentender solidariedade, santidade e boas intenções. Basta pronunciá-lo ou escrevê-lo e — voilà! — a pessoa ganha incontinenti admiração, respeito e, mais importante, os votos de que precisa para alcançar algum cargo e continuar iludindo milhões de ouvidos surdos ao óbvio, para em seguida lançá-los no rio do abandono.
Ora, todo e qualquer elemento que faça parte de uma sociedade, por definição, desempenha alguma função em seu seio: fatores de produção, como terra, capital e trabalho; grupos, como escoteiros, integrantes de escolas de samba e torcedores de um clube; atividades profissionais, como atletas, professores, prostitutas, músicos, empresários e funcionários; enfim, tudo o que existe em uma sociedade é “social”. Acontece que, quando essa palavra mágica é adicionada a certos conceitos consensuais, a resultante comumente é bonita e agradável aos ouvidos, mas, quase sempre, abstrata, vaga, dúbia, etérea e intangível. A expressão “justiça social” é um exemplo desse canto de sereia, porque, simplesmente, é absolutamente impossível precisá-la, embora seja uma delícia prometê-la. Justiça é consensual, mas justiça social é pura enganação.
Outro exemplo bastante comum é o conceito de função social da terra, insistentemente martelado para que cabeças pouco afeitas ao hábito salutar de pensar por conta própria caiam no conto do vigário da relativização dos direitos de propriedade e, assim, sejam capturadas pelos socialistas e globalistas de carteirinha.
Direito, liberdade e propriedade são inseparáveis. A propriedade é um dos elementos que estabelecem os limites do domínio do homem e contribuem para definir os meios para que os indivíduos, em sociedade, possam atingir os seus fins. Somente pela conjugação desses três elementos é que os homens podem cumprir os seus contratos ou defender-se contra arbitrariedades.
No livro Os Fundamentos da Liberdade, F. A. Hayek chega a discorrer que a propriedade é “evidentemente o primeiro passo na delimitação da esfera privada de atuação que nos protege contra a coerção”. Permite que os indivíduos, ao deterem o que é seu, resistam à arbitrariedade, seja de outros indivíduos, seja do Estado. Toda a vida em sociedade está condicionada ao planejamento e às trocas pacíficas entre os indivíduos, o que, portanto, torna a propriedade privada essencial. Os limites entre o meu e o seu são extremamente importantes para a definição da vida civil em si. A propriedade é um dos fundamentos da civilização ocidental e das sociedades de cidadãos livres. Quem conhece as experiências totalitárias do nazismo, do fascismo e do comunismo sabe que esses sistemas despóticos excluíam a possibilidade de o homem ter o seu próprio domínio, o que inclui, evidentemente, a sua propriedade.
Sem o reconhecimento do fato de que o homem deve ser o sujeito de direito e, portanto, detentor da propriedade, ele fica excluído pela Justiça, já que perde os limites impeditivos da intervenção de outros indivíduos ou do Estado. A Revolução Russa, por exemplo, ao abolir a propriedade privada, fez o indivíduo tornar-se um instrumento nas mãos do Estado, já que, sem propriedade privada, ele não consegue assegurar os pontos de limitação da ação invasiva. O Estado era tão presente que o homem já não era considerado mais um sujeito de direito.
Os direitos de propriedade, delimitados pelas leis e protegidos pelo poder judicial e pela polícia, resultam de um longo período de evolução. A história registra tentativas violentas de restringir e extinguir a propriedade privada, por parte de déspotas e movimentos a eles associados, que, mesmo quando fracassadas, deixaram rastros na concepção legal e na definição de propriedade.
Portanto, o direito à propriedade privada, ao lado dos direitos à vida e à liberdade, é uma das colunas que sustentam as sociedades de indivíduos livres, em contraposição às sociedades totalitárias. Por isso, vem causando certa preocupação, não apenas nos produtores rurais, mas em toda a população, a decisão unânime do colegiado da nossa corte superior, tomada no primeiro dia deste mês, reconhecendo as regras da Lei nº 8.629 (da Reforma Agrária), de 1993, que permite a desapropriação de terras que não cumpram sua função social, mesmo que essas terras sejam “produtivas”. Como assim — indagam os que estão preocupados — vai passar a haver possibilidade de desapropriação de terras consideradas produtivas?
Segundo o entendimento do relator, a própria Constituição estabelece inequivocamente o cumprimento da função social da propriedade produtiva como sendo um requisito e, mesmo que tal interpretação seja rejeitada, o fato é que a Constituição deixa em aberto uma pluralidade de sentidos. Portanto, seria legítimo harmonizar as garantias constitucionais da propriedade produtiva com a exigência de funcionalidade “social” imposta a todas as propriedades.
A decisão foi a resposta a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada em 2007 pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). O argumento era o de que não seria cabível a exigência simultânea dos requisitos de produtividade e função social, que trechos da Lei da Reforma Agrária misturam os conceitos de grau de utilização da terra e de eficiência na exploração, que tratam identicamente propriedades produtivas e improdutivas e, por fim, que a exigência de produtividade invalida o requisito constitucional do “aproveitamento racional e adequado”. Isso não apenas entra em choque com a Constituição, como cria insegurança jurídica para os proprietários de terras produtivas no país.
A Lei nº 8.629 estabelece que os parâmetros que definem o que é função social se aplicam a critérios bastante amplos, como aproveitamento racional e adequado da terra e o cumprimento da legislação trabalhista. O parágrafo único do artigo 185 da Constituição estabelece que as normas para cumprimento dos requisitos referentes à função social das propriedades produtivas devem ser fixadas por legislação. Para o colendo colegiado, no entanto, esse dispositivo exige o preenchimento simultâneo de ambos os critérios e, uma vez que as exigências mínimas para a caracterização de “função social” estão expressamente estabelecidas no texto constitucional, “não há como afastar a exigência para as propriedades produtivas”.
Segundo o colegiado, o estabelecimento, no inciso II do mesmo artigo, de que as propriedades produtivas não podem ser desapropriadas para fins de reforma agrária constitui uma garantia de que o critério de produtividade deve ser usado para a caracterização da função social. Nas palavras do ministro relator: “Há, assim, uma imposição destinada ao legislador para que defina o sentido e o alcance do conceito de produtividade, a fim de que esse critério seja considerado”. Ele sugere, ainda, que a legitimação da propriedade deve decorrer de seu uso socialmente adequado e que, caso o proprietário rural descumpra suas obrigações, deve ser desapropriado, com ressarcimento mediante dívida agrária. Entende também que os proprietários são copartícipes na tarefa de concretizar os objetivos fundamentais da República e que, por isso, é necessário reconhecer que a exigência de cumprimento da função social é também aplicável à propriedade produtiva.
Na prática, parece que o cerne da discussão, então, pode ser assim resumido: como preencher simultaneamente os critérios de produtividade e de “função social”? Como avaliar tecnicamente até que ponto o aproveitamento da terra é racional e adequado? Que parâmetros devem ser usados para a medida? De que maneira um uso que respeite a vocação natural da terra não prejudica a produtividade da propriedade? Quais seriam os objetivos “da República”, os mesmos do partido que está no poder no momento?
Há um problema importante inerente a essas dúvidas: é que a ideia de função social da terra (e da propriedade em geral) pode ser empregada para atender a interesses políticos e ideológicos, e não ao interesse genuíno do bem comum. Na verdade, a função social da propriedade deve ser a priori, isto é, ser ela própria. A natureza da propriedade privada é possuidora de funções internas e externas que oferecem o necessário espaço para o desenvolvimento do homem como indivíduo e da sociedade. A coesão e a paz sociais dependem fortemente da propriedade privada, o que significa que, na ausência de respeito a esse princípio, o tecido social se rompe. É necessário lembrar que mesmo uma sutil possibilidade de perda de direito à propriedade privada, conforme previsto na Constituição, pode ser perigosa, uma vez que, historicamente, sempre é um dos primeiros passos rumo ao totalitarismo.
Na reforma agrária da China, o Partido Comunista confiscou toda a propriedade privada a fim de eliminar os “latifundiários”, e atualmente não existem proprietários de terras, sendo a produção agrícola, como de resto tudo no país, regulada com mão de ferro pelo partido-Estado. Assim foi também na União Soviética, em Cuba, no Camboja e no Vietnã. Hitler, por sua vez, chegou a escrever:
“Quero que todos mantenham a propriedade que adquiriram para si conforme o seguinte princípio: o bem comum vem antes do interesse próprio. Mas o Estado deve manter o controle, e cada proprietário deve se considerar um agente do Estado… O Terceiro Reich sempre terá o direito de controlar os donos de propriedades.”
E, em menos de um mês de governo, Hitler retirou todas as garantias constitucionais sobre o direito à propriedade do povo alemão e deixou claro que a propriedade era uma concessão do Estado aos cidadãos para que eles exercessem “o bem comum”. Em suma, abolir ou controlar completamente a propriedade privada é uma obsessão para qualquer regime totalitário.
É preciso, ainda, levar em conta que o órgão responsável por definir o que é função social e o que é uma terra produtiva é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que tem vários integrantes ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e cujo atual superintendente publicou um currículo no site do governo em que ostenta orgulhosamente a invasão de terras na Fazenda Annoni, em 1985, como “experiência profissional”. Por isso, o suposto alinhamento desse movimento sem base legal e que age supostamente pela reforma agrária com as decisões da Justiça preocupa os proprietários de terra, que, além disso, se deparam com a manifesta animosidade do governo atual e de um presidente que rotula o agronegócio como “fascista”, assim como não sentem a devida segurança jurídica. O respeito à propriedade é uma das condições que separam países livres de ditaduras. Há uma guerra dos ambientalistas lunáticos da Agenda 2030 contra os fazendeiros do mundo, e não podemos esquecer que Klaus Schwab afirmou que “você não terá nada e viverá feliz”. Quem controla a comida controla a vida da população. A onda totalitária atual passa pela extinção ou pelo controle da propriedade privada, pelo cerceamento da liberdade e pela centralização das decisões, inclusive a da produção de alimentos.
*Artigo publicado originalmente no site da Revista Oeste.
PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/a-propriedade-e-um-direito-inegociavel/
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