denuncia J.R. Guzzo
Desde a intervenção da ditadura de Getúlio Vargas contra O Estado de S. Paulo, em abril de 1940, com a entrega da sua direção a um funcionário do governo e a transformação do jornal num boletim de propaganda do ditador, não se tentou no Brasil nenhuma violência contra um órgão de imprensa como a denúncia que o Ministério Público Federal acaba de fazer para punir a Rádio Jovem Pan. Não se trata de uma peça de acusação legal, feita dentro do que está escrito nos códigos de processo em vigor no país. É um manifesto político e uma demanda de repressão, por parte do Estado, contra um órgão de imprensa que exerceu em suas transmissões o direito constitucional à liberdade de expressão. Não tem nada a ver com a lei. Tem tudo a ver, e só tem a ver, com um ato de força bruta contra quem desagrada a religião oficial imposta pelo consórcio entre os partidos de esquerda e o sistema judiciário que hoje governa o Brasil. É coisa de KGB, ou da justiça que se pratica em Cuba.
A denúncia, apresentada por dois acusadores de uma “Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão”, de São Paulo, pede à Justiça Federal o cancelamento das três outorgas de difusão da Jovem Pan — quer dizer, em linguagem mais clara, a cassação das concessões que ela tem do governo para transmitir seus programas de rádio, como todas as emissoras brasileiras são obrigadas a ter. Por que um castigo desses? Por causa, pelo que dizem as 215 páginas da acusação, da cobertura jornalística das eleições de 2022 feita pela Jovem Pan. Segundo os procuradores, essa cobertura foi uma infração gravíssima — a rádio, dizem em seu português tumultuado, se “alinhou” com algo que eles descrevem como “campanha de desinformação que se instalou no país ao longo de 2022 até o início deste ano”, e veiculou “conteúdos que atentaram contra o regime democrático”. A cassação é só o começo. O MP também quer que a Jovem Pan pague R$ 13,4 milhões como indenização por “danos morais coletivos”. Não se cita o nome de nenhuma das possíveis vítimas dos danos que teriam sido causados pela emissora; devem ser os 220 milhões de brasileiros, embora ninguém saiba da existência desse prejuízo em relação a si próprio nem tenha reclamado de alguma coisa. Enfim, para ficar só no grosso, os procuradores exigem o que nem o regime militar de 1964 foi capaz de pensar um dia — a Jovem Pan deve ser obrigada a veicular “ao menos” 15 vezes por dia, entre as 6 e as 21 horas, durante quatro meses seguidos, textos escritos pelo governo com informações “oficiais” sobre aquilo que o MP, ou o próprio governo Lula, consideram ser a “confiabilidade do processo eleitoral”. E se a rádio, ou qualquer brasileiro, achar que o sistema não é confiável? É proibido achar.
Em qualquer democracia séria do mundo a denúncia seria devolvida aos procuradores pelos juízes, por não atender à exigência mais elementar de um sistema judicial coerente — o cidadão só pode ser acusado de alguma coisa se a lei disser, claramente, que coisa é essa. Nenhuma lei brasileira diz que é proibido, ou nem sequer errado, praticar atos de “desinformação”. É algo que não tem existência legal no Brasil; a palavra “desinformação”, aliás, simplesmente não aparece nas 10 milhões de leis supostamente em vigor neste país. E “atentar contra o regime democrático” — que diabo seria isso? “Democracia” é uma coisa para os dois procuradores de São Paulo. É totalmente outra para os mais de 20 comentaristas citados na acusação — e cada um deles tem o pleno direito constitucional de achar que é outra. O que a lei proíbe é “tentar abolir, com o emprego de violência ou grave ameaça, o Estado de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Ninguém fez absolutamente nada disso — nem a Jovem Pan nem os comentaristas. Que ato de “violência” ou “grave ameaça” eles praticaram? Nenhum. Só estavam falando no rádio — só isso.
É ilegal, por acaso, falar mal do STF ou do Senado ou, digamos, dos tribunais de contas — ou de qualquer das outras “instituições” que o pagador de impostos brasileiro é obrigado a sustentar?
A denúncia do MP é desse jeito, da primeira à última linha. Acusa a rádio por coisas que os procuradores acham que é crime, mas a lei não diz que é — ou por coisas que eles acham que aconteceram, mas não aconteceram. Os jornalistas que acompanharam as eleições para a Jovem Pan são acusados pelo MP, por exemplo, de fazerem uma “interpretação altamente questionável da Constituição”. É mesmo? Quer dizer que é legalmente proibido, agora, fazer interpretações “questionáveis” da Constituição? O sujeito seria legalmente obrigado, então, a só fazer interpretações corretas? Não tem nexo nenhum. Em outra passagem, o MP se irrita porque dois dos comentaristas citados, Augusto Nunes e Ana Paula Henkel, não têm formação “em direito” — Ana Paula, inclusive, é acusada de ter se formado em Arquitetura. E onde está escrito que alguém precisa ser diplomado em Direito para poder dar a sua opinião sobre esta ou aquela lei? A Jovem Pan também teria cometido o delito de dirigir “falas graves” ao STF e ao TSE, “inclusive contra os seus ministros”, e de criticar o senador Rodrigo Pacheco por não levar adiante as solicitações de impeachment dos membros da Suprema Corte — coisa obviamente prevista na Constituição. Como assim? É ilegal, por acaso, falar mal do STF ou do Senado ou, digamos, dos tribunais de contas — ou de qualquer das outras “instituições” que o pagador de impostos brasileiro é obrigado a sustentar? Será que não se pode falar mal nem desse Pacheco?
A denúncia acusa a Jovem Pan de violar o artigo 221 da Constituição. E o que diz o artigo 221? Diz que as emissoras de rádio e televisão devem dar “preferência” a “finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”; também devem promover “a cultura nacional e regional” etc. Não pode ser isso o crime da Jovem Pan. Só pode ser, então, alguma falha no “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”, como exige a última frase do artigo 221. A denúncia, pelo jeito, se refere a esse item — os procuradores acham que a rádio ofendeu, em sua cobertura das eleições, “os direitos fundamentais” dos cidadãos. Quais, exatamente? Não se diz nada sobre isso. Também se acusa a emissora de não atender aos “interesses da coletividade” e de não respeitar o artigo 53 do Código Brasileiro de Comunicações — cuja redação foi dada por um decreto-lei do regime militar. É dali que vêm as excomunhões para as ofensas à “moral pública” — ou a repressão aos culpados de “caluniar, injuriar ou difamar os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário ou os respectivos membros”. Ou, então, para a veiculação de “notícias falsas”. Esse regime, a propósito, é chamado de “ditadura militar” pela denúncia — e os jornalistas são formalmente acusados, ali, de elogiar “a ditadura militar”.
Os promotores dizem que a segurança e integridade do sistema eleitoral foram confirmadas pela comissão das Forças Armadas que estudou a questão no ano passado. Não foi isso o que aconteceu no mundo dos fatos. As Forças Armadas não confirmaram nada — só disseram que, com os elementos que puderam examinar, não dava para afirmar se as urnas do TSE estavam bichadas ou se, ao contrário, eram garantidas contra possíveis fraudes. Ou seja: não disseram que sim nem disseram que não. A questão das urnas, na verdade, é o centro das acusações feitas pelos procuradores. Basicamente, eles dizem que a Jovem Pan e seus comentaristas “desacreditaram, sem provas”, o processo eleitoral de 2022 e contribuíram para que “um enorme número de pessoas duvidasse da idoneidade” das eleições. Sim, milhões de brasileiros duvidaram, e continuam duvidando, das urnas eletrônicas que levaram o TSE a proclamar o presidente Lula como vencedor da eleição. Eles não entendem até hoje por que essas urnas são consideradas pelo consórcio STF-Lula como o sacrário do Santíssimo Sacramento, uma coisa em que ninguém pode mexer nem criticar, sob pena de ser indiciado em inquérito criminal — e que não pode, em nenhuma hipótese, ser tecnicamente melhorada. Por que isso? As urnas são um objeto mecânico — por definição, estão sujeitas a melhorias e a ajustes, hoje, amanhã e sempre. Quem criou desconfiança em relação às urnas eletrônicas não foram os programas da Jovem Pan. Foi a recusa absoluta do TSE em admitir qualquer acerto em seu sistema, por mínimo que fosse. Ou, por outro ângulo de visão: ninguém criou mais desconfiança em relação às urnas do que o Congresso Nacional, que aprovou uma lei, nada menos que uma lei, reconhecendo que o sistema não é seguro e, por essa razão, estabeleceu a obrigatoriedade de comprovação por escrito dos votos. O STF suprimiu a lei, por achar que ela era “inconstitucional”; a Câmara de Deputados estava pronta para aprovar uma nova lei no ano passado, estabelecendo a mesma coisa, mas um ministro do STF foi lá e convenceu as lideranças a desistirem do projeto. (Essas lideranças lideram um plenário do qual um terço tem problemas com o Código Penal e depende do STF para ficar do lado de fora da cadeia.)
Os procuradores, em sua denúncia, se mostram indignados com as emissões da Jovem Pan. Têm todo o direito a isso, como cidadãos, mas como membros do Ministério Público é indispensável que tenham mais do que indignação; têm de ter provas materiais das acusações que fazem e razões legais para pedir o que pedem. A cobertura das eleições pela emissora foi ruim? Pode ter sido; é uma questão de ponto de vista. Mas esse é um problema entre a Jovem Pan e a sua audiência — quando não gosta do que ouve, vê ou lê, o público simplesmente vai embora e deixa os jornalistas falando sozinhos. O Estado não tem nada a ver com isso.
Não é surpresa, naturalmente, que o Ministério Público se comporte assim. Boa parte dos seus 13 mil membros, do MP da União e dos Estados, são militantes políticos que consideram que o seu dever não é aplicar a lei, mas fazer do Brasil um país melhor — segundo as suas ideias pessoais do que é melhor para o país, é claro. O que mais chama a tenção, no caso, é a posição geral da imprensa brasileira. Ao silenciar quase que completamente sobre a denúncia, a mídia se mostra a favor do MP e contra a Jovem Pan e os seus comentaristas — é isso, na prática. As redações, na maioria, funcionam como células políticas das facções de esquerda; os proprietários dos veículos, também em sua maioria, deixam que seja assim, por falta de interesse, de energia ou de talento para conduzir as suas empresas. O resultado é que a imprensa no Brasil está virando uma ex-atividade; e o jornalismo, uma ex-profissão. A ideia de que deve haver órgãos de comunicação diferentes, com posturas editoriais diferentes, está em vias de extinção, ou já foi extinta — como a iluminação pública a bico de gás ou os condutores de charrete que ficavam em frente às estações de trem nas cidades do interior. Os jornalistas, hoje, se tornaram incapazes de entender, e de aceitar, a liberdade de imprensa.
J.R. Guzzo, Revista Oeste
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