Jornalista Andrade Junior

sábado, 24 de junho de 2023

'Um homem sem preço',

 por Augusto Nunes


Dono da Tribuna da Imprensa, deputado federal pela UDN do Rio de Janeiro, tribuno de primeira grandeza, Carlos Lacerda nem esperou a abertura da temporada de caça ao voto para deixar claro, em meados de 1955, que a disputa pela Presidência da República seria especialmente feroz. Às vésperas da convenção do Partido Social Democrático que lançaria a candidatura de Juscelino Kubitschek, o parlamentar da União Democrática Nacional avisou que o governador de Minas Gerais estava proibido de governar o Brasil. “Juscelino não pode ser candidato”, começou a sequência de ameaças encadeadas pelo grande domador de palavras. “Se for candidato, não pode ser eleito. Se for eleito, não pode tomar posse. Se for empossado, não pode governar.” Decidido a provar que Deus o poupara do sentimento do medo, Juscelino foi à luta. Vitorioso na convenção, JK representou o PSD na eleição de 3 de outubro. Com 35,6% dos votos, derrotou por uma diferença superior a cinco pontos percentuais o Marechal Juarez Távora, candidato da UDN.

O presidente eleito preparava-se para a posse quando Lacerda, apoiado por militares inconformados com a derrota do marechal Juarez, decidiu bloquear a porta de entrada do Palácio do Catete com uma invencionice de chicaneiro: só poderia governar o país o candidato que conseguisse a maioria absoluta dos votos. Como JK não passara de 50%, deveria ser realizada outra eleição. Aquele pontapé na Constituição foi a senha para a entrada em cena do doutor Heráclito Fontoura Sobral Pinto, o maior advogado da história do Brasil. O desconforto com certas ideias do candidato do PSD mantivera o combativo mineiro de Barbacena distante da campanha. Mas compreendeu que o disparo contra Juscelino ferira a Constituição. Era hora, portanto, de garantir a posse do presidente eleito. Ao lado de juristas providos de vergonha, Sobral fundou a Liga de Defesa da Legalidade. Mais brasileiros se juntaram à ofensiva, a investida lacerdista perdeu força, e Juscelino assumiu a Presidência sem sobressaltos.

Pouco depois da posse, o presidente ofereceu a Sobral uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Nenhuma surpresa. Era exemplarmente ilibada a reputação do doutor que também merecia nota 10 com louvor no quesito “notável saber jurídico”. Além do mais, a presença de um jurista de tamanho porte poderia tornar respiráveis até mesmo tribunais que lutam o tempo todo para demonstrar que o que já está péssimo sempre pode piorar. Sobral Pinto recusou a toga. De novo, nenhuma surpresa. Ao agradecimento de praxe seguiu-se a ponderação: tanto inimigos juramentados quanto aliados preteridos logo estariam enxergando na nomeação parte do pagamento pelo desempenho na batalha que havia abortado outro estupro da Constituição. Foi essencialmente para preservar a legalidade que se aliara a JK. Sobral tinha pela obediência às normas constitucionais o mesmo apreço dedicado a palavras de tal forma robustas que dispensam complementos.

O que estaria dizendo o esplêndido homem defensor da lei se vivesse para ver estes tempos estranhos?

Admiradores de regimes ditatoriais amam penduricalhos inúteis, constatou Sobral. “Eles vivem sonhando com uma democracia à brasileira”, ironizava. “Isso não existe. O que existe é peru à brasileira.” O amor à Justiça também orientava a aceitação de clientes. “O advogado é o primeiro juiz da causa”, ensinou. Agarrado a esse princípio, jamais tentou transformar culpados em inocentes, jamais recorreu a vigarices de rábula para livrar do castigo quem merecia cadeia. Antes de assumir a defesa de qualquer acusado ou já cumprindo pena, tratava de saber o que efetivamente ocorrera ou o que se passava no cárcere. Porque a causa não lhe pareceu defensável, recusou honorários de espantar um emir das arábias e rechaçou com frequência pedidos formulados por amigos. Católico praticante, radicalmente democrata, era avesso a golpes de Estado e tentativas de tomada do poder por métodos violentos. Mas socorreu com bravura de gladiador — sem cobrar um só centavo — o líder comunista Luís Carlos Prestes e o ativista alemão Harry Berger, presos depois da fracassada revolta comunista. Para interromper a sequência de torturas impostas a Berger por seus carcereiros, recorreu à lei de proteção aos animais. O prisioneiro já perdera a saúde e a razão. 

O que estaria dizendo o esplêndido homem defensor da lei se vivesse para ver estes tempos estranhos? O presidente da República entrega a Alexandre de Moraes o leme do barco à deriva para ver como é, visto de longe, o país que visita uma vez por mês, presenteia a primeiríssima-dama com 12 passeios internacionais por ano, não decorou o prenome de 23 dos 37 ministros, fecha negócio com integrantes de outros Poderes em churrascos e jantares que proíbem o ingresso com celulares, insulta o antecessor de meia em meia hora, rebaixa o vice, Geraldo Alckmin, a porteiro do Gabinete Presidencial, exige que um ministro comunista emagreça uma arroba em sete dias, desanda em lives sem plateia às 8 da madrugada, diz ao Papa que Daniel Ortega agora frequenta reuniões dos Poderosos Pedófilos, traz Maduro a Brasília e manda Dilma para a China, fora o resto. Por que negar uma toga ao advogado que fez o durão Gilmar Mendes sucumbir ao pranto convulsivo sem lágrimas? 

Morto em 1991, aos 98 anos, não poderia ser outro o título do documentário que resume a trajetória luminosa do singularíssimo mineiro de Barbacena: O HOMEM QUE NÃO TEM PREÇO. Quantos mais não estão à venda?, pergunto-me na semana da sagração de Cristiano Zanin. Em maio de 1969, ao visitar seu escritório no Rio para entregar-lhe um livro, enfim pude apertar a mão daquele homem de terno e colete pretos como a gravata, as meias e os sapatos, em harmonioso convívio com o branco da camisa social e dos cabelos nevados. Vestia-se sempre assim. E assim se trajava a lenda em 1983, quando empunhou o microfone no palanque do mitológico comício da Candelária. Foi o mais comovente momento da campanha das Diretas Já. “Peço silêncio”, disse Sobral antes de começar a leitura do artigo primeiro da Constituição: “Todo o poder emana do povo, e em seu nome deve ser exercido…”. O uivo da multidão completou sem palavras a frase esquecida em algum lugar do passado. 

Onde está escrito, na Constituição ou em qualquer lei, que é proibido duvidar do bom funcionamento do sistema de votação e de apuração dos votos? Em lugar nenhum


Oprocesso do ex-presidente Jair Bolsonaro, aberto na quinta-feira, dia 22 de junho, e a ser retomado na terça, dia 27, leva a uma pergunta básica: o que ele fez de errado, ou ilegal, para justificar que o Comissariado Supremo de Controle das Eleições, ou TSE, possa cassar os seus direitos políticos e proibir 140 milhões de eleitores brasileiros de votarem nele nas próximas eleições? A resposta é muito simples: nada. Nada mesmo? Sim, é exatamente isso: nada mesmo. Em nenhum momento, ao longo de toda essa história, Bolsonaro esteve diante de um processo judicial verdadeiro, como se faz em qualquer democracia decente — onde o acusado é inocente até que o acusador prove a sua acusação, e as provas têm de manter um mínimo de relação objetiva com os fatos. Ele esteve condenado a ser “inelegível” antes mesmo que o processo fosse aberto; não foi levado a um tribunal de Justiça, e sim a um pelotão de fuzilamento. Nunca houve a menor intenção de aplicar a lei, ou de agir de maneira imparcial. Seu caso não tem nada a ver com a legislação em vigor no Brasil, ou com seus direitos constitucionais. Tem tudo a ver com política, e só com política — é muito simplesmente a execução, por parte de quem tem a força bruta, de um inimigo considerado incômodo. Bolsonaro é de direita, e no Brasil de hoje isso é ilegal para o alto Poder Judiciário — sobretudo quando, pelas contas dos próprios comissários do TSE, o homem de direita tem o voto de quase 50% dos eleitores, como o ex-presidente teve nas últimas eleições.

O que se tem aqui é um caso que os norte-americanos de outros tempos chamariam de kangaroo court — antes, é claro, do presidente Joe Biden e da adesão automática de seu Partido Democrata ao que consideram a esquerda global. Trata-se, na prática, do julgamento e condenação, por parte de um grupo de indivíduos que têm o poder, de alguém que decidiram ser culpado de alguma coisa, sem provas e sem a obediência ao processo legal. A Constituição brasileira não diz, em lugar nenhum, que é proibido ser de direita ou contra o Sistema “L” — mas é só isso o que conta para o STF e o seu braço eleitoral. Eles afirmam que não é assim, claro, embora o ministro-chefe do grupo diga publicamente que é um crime ser de “extrema direita” no Brasil, ou algo tão parecido com isso que não dê para perceber qual é a diferença. O ex-presidente, na visão do TSE, violou a lei eleitoral quando estava no governo — basicamente por “agir contra a democracia”, algo que, para começo de conversa, ninguém foi capaz de definir com objetividade ou sequer com a lógica mais elementar. Mas, se não há perseguição política, seria indispensável apresentar provas materiais dos delitos que Bolsonaro teria cometido, e não há nenhuma prova que fique de pé.

O ex-presidente é culpado, pelo que deu para entender da alarmante maçaroca de denúncias que o relator impôs ao público, de abusar do seu cargo com o objetivo de ganhar a eleição, ou de dar um golpe de Estado — algo incompreensível, desde logo, quando se leva em conta que ele perdeu a eleição, e não deu golpe nenhum. A base da acusação é uma reunião que Bolsonaro teve com embaixadores de nações estrangeiras durante a campanha, na qual duvidou da limpeza do sistema eleitoral e falou o diabo de alguns ministros do STF. A apresentação foi, com certeza, uma das piores ideias que o ex-presidente teve em todo o seu governo — um tumulto mental sem fio condutor, sem ordem, sem clareza, às vezes sem nexo, com repetições e trechos onde não se entende nada. Foi sobretudo inútil. Os embaixadores não ficaram minimamente impressionados — e tanto não ficaram que nenhum dos seus governos levou a sério as acusações, nem fez objeção alguma às urnas eletrônicas do TSE ou ao resultado oficial das eleições. Mas uma exposição ruim é apenas isso — uma exposição ruim. Não é um crime. Onde está escrito, na Constituição ou em qualquer lei, que é proibido duvidar do bom funcionamento do sistema de votação e de apuração dos votos? Em lugar nenhum. Milhões de brasileiros, na verdade, acham exatamente isso. Qual é o problema?

Haveria problema se Bolsonaro tivesse usado seu comício diante dos embaixadores para interferir no resultado da eleição, ou para não aceitar a contagem de votos que foi apresentada pelo TSE, ou para continuar à força no governo. Mas ele não fez absolutamente nada disso. Sua interferência no resultado foi nula; obedeceu a todas as ordens que recebeu da Justiça Eleitoral durante a campanha e, mais do que tudo, foi embora na hora que o seu mandato acabou. Há seis meses está fora da Presidência. Não fez nada de concreto para ficar, ou para contestar os números que o TSE anunciou. Que “golpe” de Estado é esse em que o golpista, em vez de continuar no governo usando os seus poderes como presidente da República e como comandante das Forças Armadas, vai embora para casa no fim da história? Bolsonaro, na verdade, nem tentou apelar para o faladíssimo “artigo 142” da Constituição, não solicitou a intervenção militar em coisa alguma, e não declarou nenhum “estado de emergência” ou coisa parecida. É acusado, sobretudo por Lula e pela mídia, de ter “minutas do golpe” — Lula, inclusive, disse que está “provado” que o ex-presidente teve culpa de tudo. O que existe, de fato, são apenas papéis, apreendidos com um colaborador de Bolsonaro, que debatem a possibilidade de serem tomadas decisões previstas na Constituição Federal. Desde quando é proibido estudar o que está escrito na Constituição — só estudar, sem fazer nada de prático? 

Em nenhum momento dos seus quatro anos como presidente Bolsonaro desrespeitou uma única lei em vigência no Brasil. Não se recusou a cumprir nenhuma das ordens que recebeu do Poder Judiciário, e recebeu uma tonelada de ordens

O ex-presidente também está condenado, sem a menor possibilidade de apelação ou de defesa, pelas violências cometidas contra os edifícios dos Três Poderes no dia 8 de janeiro. Faz parte, no veredicto oficial, de sua conduta criminosa em geral. Não existe, mais uma vez, o mais remoto pedaço de prova de que ele tenha tido alguma coisa a ver com os ataques — o que existe, ao contrário, é uma maciça ausência de provas. É simples. Lula e seu governo, que acusam Bolsonaro de “comandar” os ataques de Brasília, tem uma oportunidade perfeita de provar o que dizem na CPMI aberta pelo Congresso para investigar o episódio. Mas eles nunca quiseram que se investigasse nada. Em primeiro lugar, foram ferozmente contra a abertura da CPMI. Depois, quando não deu para segurar, assumiram o controle da comissão — e desde então não têm feito outra coisa a não ser sabotar os trabalhos de apuração. Por que isso, se eles são vítimas de uma tentativa de golpe, e Bolsonaro é o culpado por ela? Nada melhor, nesse caso, do que apurar com precisão os fatos. Mas eles não querem apurar os fatos — querem, na verdade, esconder o que aconteceu, com sua recusa em requisitar informações, obter provas físicas e convocar testemunhas. Continua sendo um completo mistério, de qualquer forma, como os golpistas poderiam dar o seu golpe sem terem uma única arma, sem comando, sem plano, sem apoio dos militares, sem absolutamente nada, só com cadeirinhas de praia e bandeiras do Brasil. Não há como colar.

Bolsonaro é acusado, no atacado e no geral, de manter uma atitude “antidemocrática” não especificada em seu governo. Seria essa, no fundo, a sua grande culpa. Pode não ter dado golpe nenhum, mas tinha “a intenção” de dar — ou quis dar, pensou em dar, deixou a impressão de que iria dar, e assim por diante. De novo, o problema com isso é a falta de provas, ou mesmo de vida inteligente, nas acusações. Em nenhum momento dos seus quatro anos como presidente Bolsonaro desrespeitou uma única lei em vigência no Brasil. Não se recusou a cumprir nenhuma das ordens que recebeu do Poder Judiciário, e recebeu uma tonelada de ordens. Não desobedeceu às decisões do Congresso. Não censurou uma única palavra de crítica — e foi o presidente que mais levou pancada da imprensa em toda a história nacional. Não perseguiu os adversários. Não aplicou multas de R$ 1 milhão por dia, ou por hora. Não reprimiu nenhuma manifestação de rua da oposição — nem de rua nem de qualquer outro tipo. Não processou ninguém. Não cassou ninguém. Não prendeu ninguém. Antidemocrático por que, então? Os fatos mostram exatamente o oposto. O problema é que os ministros parecem ser portadores de anticorpos hereditários e transmissíveis que não deixam a realidade dos fatos estragar a arquitetura político-ideológica das suas decisões. Nem é preciso dizer, à essa altura, que o relator do processo do TSE é o mesmo ministro a quem Lula deu, em público, tapinhas de amor no rosto — e que na cerimônia de diplomação de Lula disse ao ministro Alexandre de Moraes o célebre “missão recebida, missão cumprida”. É claro, também, que ele e os seus chefes no STF montaram um espetáculo pop para fazer propaganda política no julgamento; convocaram para o show, inclusive, a imprensa internacional, que naturalmente acha de Bolsonaro a mesmíssima coisa que a maioria da imprensa brasileira, ou seja, que ele é um horror. No fim, ficam todos convencidos de que as “instituições” funcionaram, a justiça foi feita, os artistas da Globo salvaram a democracia, os maus foram castigados e o amor venceu — todos, menos os eleitores deste país.




 por Augusto Nunes



























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