por Roberto Motta
Nunca devemos abandonar a esperança de que políticos e jornalistas se aproximem do papel que o imaginário popular lhes reservou: defensores da verdade, da justiça e do homem comum
Oque é Jornalismo? Essa é uma pergunta fundamental neste momento. Não é a única. Outras perguntas importantes são: o que é Moral? O que é Democracia? O que é Estado de Direito?
Existe uma verdade absoluta, ou tudo o que conhecemos são interpretações, visões particulares que têm, todas, valor igual? Perguntando de outra forma: há coisas que existem independentemente da nossa vontade, ou tudo que nos cerca não passa da manifestação de preferências e de opiniões, influenciadas, às vezes, pelos piores motivos?
Existe uma realidade que pode ser verificada e comprovada, ou é tudo narrativa?
É possível dizer que uma coisa é certa ou errada? Ou certo e errado são conceitos relativos que dependem da época, do lugar, e daqueles que exercem o poder no momento? É possível dizer que uma coisa é boa ou ruim, ou que determinada forma de expressão é de boa qualidade ou de má qualidade, sem que isso caracterize nossa opinião como defeituosa, e a nós como preconceituosos? Ainda é possível — permitido — diferenciar entre baixa e alta cultura, por exemplo?
E de volta à pergunta inicial: o que é jornalismo? Um instrumento de exploração da verdade, custe o que custar? Um instrumento de construção ou confirmação da narrativa dos poderosos? Ou apenas um produto posto à venda pelo melhor preço?
Existe algo nobre na percepção popular do papel do jornalista. Alguns jornalistas correspondem a essa expectativa; tive o privilégio, na minha carreira de intelectual acidental, de conviver com vários deles. Permanecerão como exceções. Boa parte da atividade “jornalística” consiste em servir como caixa de ressonância do poder, ou na fabricação de narrativas lucrativas. Um dos primeiros exemplos foi o magnata norte-americano William Randolph Hearst, que ajudou a deflagrar uma guerra entre os Estados Unidos e a Espanha, em 1898, com o objetivo de aumentar a circulação de seus jornais. Money, money, money.
Não se deve buscar santidade na política nem no jornalismo. Mas nunca devemos abandonar a esperança de que políticos e jornalistas se aproximem do papel que o imaginário popular lhes reservou: defensores da verdade, da justiça e do homem comum.
Mas a história é cíclica, e uma das coisas que se repetem são épocas em que a liberdade de expressão é suprimida.
A internet, os celulares e as redes sociais revolucionaram tudo. Alguns veículos de mídia, incapazes de compreender ou de lidar com essa mudança, se resignaram ao papel de porta-vozes do sistema — do mecanismo, do regime —, qualquer que ele seja. Muitos jornalistas se acomodaram confortavelmente nesse papel.
Mas os papéis reais do jornalismo ainda são revelar a verdade e servir de memória — porque as pessoas esquecem.
A verdade mais fundamental dos dias de hoje parece, para muitos, uma súbita revelação. As piores distopias, adivinhadas em livros como 1984, A República dos Bichos e Admirável Mundo Novo, se materializaram. Nada escapa a esse suicídio coletivo, que vai da moral e da arte à linguagem e à lógica. A base dessa destruição é o racionalismo construtivista que, segundo o economista austríaco Friedrich Hayek, faz com que ativistas radicais de todos os matizes — mas especialmente os de esquerda — acreditem que o cérebro humano (especialmente o cérebro deles) tem a capacidade de reorganizar racionalmente a sociedade, segundo admiráveis linhas novas.
Neste momento, um jornalismo fiel à realidade e à nossa herança cultural tem papel fundamental de resistência e resgate. Mas o jornalismo é feito por homens e mulheres submetidos aos mesmos processos racional-construtivistas que o resto da sociedade; na verdade, as escolas de jornalismo disputam com as escolas de direito a condição de maiores centros de doutrinação ideológica da Academia atual.
O poder de selecionar os eventos que se tornarão notícia e a capacidade de criar uma interpretação para eles — uma narrativa — passaram de poucos grupos econômicos e de uma corporação ideologizada para as mãos do cidadão comum
A questão não se resume ao desconhecimento de nossa herança cultural greco-romana-judaica (me mostre um jornalista que tenha lido Heródoto ou Adam Smith, e eu lhe mostro um esquerdista que tenha lido todos os volumes de O Capital). A questão é que a maioria dos jornalistas foi convencida a odiar essa herança, antes mesmo de conhecê-la.
Tinha que dar errado.
A consequência é que a maioria dos cidadãos, na maioria dos países, não reconhece mais no jornalismo “tradicional” (leia-se: a grande mídia) um instrumento válido de conhecimento e interpretação da realidade, nem um lugar onde encontrar opiniões variadas, ponderadas e relevantes.
As redes sociais ocuparam esse espaço.
O poder de selecionar os eventos que se tornarão notícia e a capacidade de criar uma interpretação para eles — uma narrativa — passaram de poucos grupos econômicos e de uma corporação ideologizada para as mãos do cidadão comum. Isso dói muito, principalmente nos poderosos, elitistas e arrogantes intelectuais.
Aí está a explicação do furor que se observa, em quase todo o Ocidente, para regulamentar, dominar e controlar as redes sociais.
As redes representam a reinvenção do jornalismo. A identificação, coleta, apresentação e crítica da informação acontecem de forma distribuída, sem uma orientação homogênea, sem edição ou curadoria centralizadas e sem qualquer chance de monopólio. A tentação é dizer que se trata de uma revolução; como toda revolução, essa tem perdedores e ganhadores.
Os principais perdedores são os veículos de mídia tradicionais, que perderam circulação, anunciantes, faturamento e credibilidade. Muitos consideram essas perdas irrecuperáveis.
O cidadão comum é o maior ganhador. Ele tem acesso a uma variedade de informações — vindas de uma variedade de fontes — inimaginável até pouco tempo atrás. Essa mudança traz desafios, claro; sem a existência de uma curadoria onipresente, cabe agora ao leitor ou espectador a responsabilidade de avaliar a correção, a veracidade e a relevância de cada notícia.
Essa responsabilidade é mais do que compensada pelos benefícios: liberdade de informação, possibilidade de independência real de pensamento, aumento exponencial da variedade de conteúdo disponível e fim da tutela do Estado e das grandes corporações sobre a comunicação de fatos e ideias.
Nesse mundo novo, o dilema enfrentado pelo jornalista — profissional ou amador — não é muito diferente daquele enfrentado pelo advogado ou pelo político. A escolha entre a realidade, a verdade e a justiça de um lado, e a adulação, a mentira e a venalidade, do outro, é uma das escolhas mais antigas da humanidade.
Os bons jornalistas — aqueles que demonstram competência, coragem e coerência — terão público e trabalho em qualquer plataforma ou tecnologia. Esses jornalistas são respeitados até por seus adversários.
O jornalista capacho — aquele cuja consciência e palavra estão disponíveis para aluguel — não é respeitado nem por seus amigos.
Roberto Motta, Revista Oeste
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2023/06/o-jornalismo-morreu-viva-o-jornalismo.html
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