Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 31 de março de 2023

'O retorno de Bolsonaro e o futuro político da direita',

  por Flávio Gordon


“Não me agrada a rigidez nas espadas longas e nas mãos. Rigidez significa uma mão morta. Flexibilidade significa uma mão viva” — ensina o célebre samurai Miyamoto Musashi, em seu O Livro dos Cinco Anéis, clássico manual de estratégia. Tendo vivido no Japão da virada do século 16 para o 17, consta que esse Ronin, guerreiro solitário e autodidata, jamais perdeu um combate, sagrando-se invariavelmente vitorioso contra mais de 60 oponentes. Dominando tanto a arte do manuseio da katakana (espada longa) quanto da wakizashi (espada curta ou “companheira”), Musashi sabia bem quão fatal podia ser a rigidez de movimentos em combate. 

Mas, se na guerra a rigidez é trágica, na vida cotidiana, ao contrário, ela é cômica. É o que Henri Bergson sugere em O Riso: Ensaio Sobre o Significado do Cômico. Como explica o filósofo francês, uma das causas do cômico é a presença de certa rigidez mecânica ali onde seriam esperadas a maleabilidade atenta e a flexibilidade viva. Alguém que, a correr pela rua, tropeça e cai, provoca riso nos transeuntes, porque, por falta de agilidade, por desvio ou teimosia do corpo, continuou realizando o mesmo movimento, quando as circunstâncias exigiam algo distinto. O mesmo se dá em relação ao sujeito demasiado metódico, que se empenhasse em suas pequenas ocupações cotidianas com uma regularidade matemática. 

Caso algum gozador embaralhasse seus objetos pessoais, o contraste entre o comportamento habitual e a nova situação gerada pela broma provocaria riso: o pobre mete a pena no tinteiro e sai cola; acredita sentar numa cadeira sólida e se estatela no chão; tenta calçar os sapatos, mas os pés estão trocados.  

A razão da comicidade é a mesma nos dois casos, e consiste na incapacidade de se adaptar, em tempo, a um obstáculo imprevisto ou a uma alteração nas circunstâncias. Trata-se, noutro plano, da comicidade que caracteriza o Dom Quixote de Cervantes, pois o nobre fidalgo, como que congelado na história, continuava a se portar como no tempo mítico dos cavaleiros andantes, sem atinar para a mudança de era e para a realidade em que viviam os seus contemporâneos. E, com efeito, a rigidez quixotesca é responsável por algumas das páginas mais cômicas — e, simultaneamente, um tanto quanto melancólicas — da literatura universal. 

Na política — que, sob certo aspecto, está a meio caminho entre a comédia e a guerra —, a rigidez tende a resultar num misto de tragédia e comédia, ou, se preferirem, numa tragicomédia. No universo político brasileiro, ainda mais. A possibilidade de um destino tragicômico, por exemplo, talvez seja o maior risco representado pelo retorno do ex-presidente Jair Bolsonaro ao Brasil, a principal notícia política desta quinta-feira, 29. Risco, por óbvio, da perspectiva de seus eleitores, apoiadores e simpatizantes. 

No seio da direita brasileira contemporânea, muitos parecem ter concluído que, se Bolsonaro foi um bom administrador do país, também foi, por outro lado, um mau combatente

Tudo dependerá, a meu ver, da postura de Bolsonaro em relação às novas circunstâncias. Dependerá, em último caso, da alternativa entre uma eventual rigidez — que aniquila o político ou faz dele um objeto cômico (o que, em termos de estima pública, vem a dar no mesmo) — e uma esperada flexibilidade, que lhe garante sobrevida e o imuniza contra o riso (de deboche) alheio. Que Bolsonaro é esse que retorna dos EUA? Um político ágil e flexível à la Miyamoto Musashi, ou um rígido tragicômico como Dom Quixote e as vítimas do samurai? Confesso ser essa a minha maior curiosidade no momento. 

O risco da rigidez apresenta-se considerável, sobretudo porque algumas das condições sociopolíticas anteriores se mantiveram parcialmente, o que pode servir para obliterar a percepção das mudanças. A persistência do fascínio popular exercido por Bolsonaro já havia ficado clara, por exemplo, durante sua estadia nos EUA. Por onde quer que passasse, ele não cansava de receber efusivas manifestações de apoio, provenientes não apenas de brasileiros, mas também de representantes da direita norte-americana. No início do mês, o ex-presidente brasileiro talvez tenha sido a principal estrela do CPAC 2023 (Conferência de Ação Política Conservadora), chegando a ofuscar Donald Trump. Um feito e tanto. 

Já no Brasil, parecem se repetir as cenas familiares, que mostram um Jair Bolsonaro sendo recepcionado por multidões de apoiadores, ainda fortemente mobilizados pelo carisma político do ex-presidente, quase como se o tempo não tivesse passado. No Aeroporto de Brasília, em suas vias de acesso e na frente da sede do PL, ressoam insistente o tradicional coro de “mito, mito” bem como a declamação ritmada do lema da última campanha: “Deus, pátria, família e liberdade”. E o que não faltam são políticos e parlamentares bolsonaristas oferecendo lealdade e disposição para a briga. Portanto, não parece haver dúvida de que Bolsonaro conserva um considerável capital político. Caso consiga resistir à pesada artilharia do conluio institucional antibolsonarista, o ex-presidente pode surpreender e ter uma sobrevida política, sobretudo na ausência de novos quadros no arco do anticomunismo. 

Mas, obviamente, toda essa aparência de continuidade pode induzir à rigidez de comportamento, sugerindo a ideia de que, para enfrentar as batalhas políticas vindouras, se devem manter as mesmas estratégicas, táticas, armas e ferramentas do período anterior. E aí, justamente, residiria o maior erro do “novo” bolsonarismo. Pois a verdade é que, entre as gigantescas manifestações populares da celebração da Independência e o momento atual, intercorreu o fatídico 8 de janeiro, com todos os seus conhecidos desdobramentos. Não, não navegamos mais nos ventos favoráveis de 2018. E já não nos movemos no contexto favorável de ascensão entusiasmada da assim chamada direita brasileira. Não estamos mais no bojo da esperança restauradora de 7 de setembro de 2021, logo frustrada por um acordo manco, costurado desde cima. Nem, tampouco, no frenesi aguerrido de 7 de setembro de 2022, que muitos na direita viram como a batalha decisiva pela sobrevivência de um projeto de país soberano.  

Vivemos, em vez disso, o período pós-derrota. Para a direita, uma derrota que não foi apenas eleitoral, mas sobretudo política e cultural. O contexto atual é o de um novo regime, controlado com mãos de ferro por socialistas, que, depois de décadas de aparelhamento estatal (e, em especial, do Judiciário), se mostram dispostos a lançar mão de toda a expertise em reprimir politicamente a oposição. Já em seus primeiros dias, esse regime tratou de comandar milhares de prisões políticas, que tiveram como alvos aqueles apoiadores que, em vão, depositaram esperanças exageradas em Bolsonaro e nas Forças Armadas.  

Por conta de tudo o que se passou, o apoio popular de que ainda desfruta o ex-presidente hoje divide espaço com o desencanto. A história não pode ser desfeita, e o que atualmente se percebe entre muitos dos antigos apoiadores de Bolsonaro é uma decepção com a forma com que o ex-presidente encerrou o seu ciclo à frente do governo. O 8 de janeiro e os eventos subsequentes deixaram a sensação de que, ali onde se esperava liderança, restou um silêncio ambíguo, que acabou expondo a “tropa” à sanha do inimigo. E quando se esperava fortaleza, o que veio foi uma retirada às pressas, que deixou desamparados os da linha de frente. Convém não desprezar essa memória. 

No seio da direita brasileira contemporânea, muitos parecem ter concluído que, se Bolsonaro foi um bom administrador do país, também foi, por outro lado, um mau combatente, tendo fracassado na desmontagem das estruturas de poder do inimigo. Sem entrar no mérito da justeza ou não dessa conclusão, resta evidente que, se as estratégias outrora adotadas — que revelaram uma desproporção entre os furiosos rosnados na direção do inimigo e as débeis mordidas que se lhes seguiam — já eram inadequadas à época, hoje o são, a fortiori, ainda mais. Para a direita, o momento é de flexibilidade, adaptabilidade e reformulação nos métodos.  

É, sobretudo, um momento de autocrítica. No passado recente, a direita entregou-se muito rápido a um estado de triunfalismo ingênuo, cuja imagem simbólica talvez seja a de Bolsonaro chutando para longe um boneco do Pixuleco, uma cena catártica, que sugeria o fim definitivo da ameaça comunopetista ao Brasil. Hoje, que essa ameaça se concretizou de maneira avassaladora, a direita saltou diretamente do triunfalismo para um estado de desencanto paralisante. Em sendo urgente livrar-se desse último, já não se pode fazê-lo, contudo, retomando o primeiro. Afinal, a presente situação é a de uma guerra travada no terreno inimigo e em franca desvantagem bélica. E, num tal contexto, afigura-se como tragicômica toda e qualquer bravataria, mesmo aquela que, num passado recente, talvez fosse dotada de algum sex appeal 

A hora é de discrição, não de espalhafato. É de aproximações sucessivas, não de pé na porta. É do silencioso Miyamoto Musashi, não de anacrônicos cavaleiros andantes munidos de memes e “tic tacs”, e menos ainda do Cavaleiro Negro do Monty Phyton, aquele que, reduzido pela espada do inimigo a pouco mais que um cotoco humano, continuava bravateando a sua iminente vitória… 


Revista Oeste












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