por Flávio Gordon
Num tal esquema global de restrição da liberdade de expressão, o partidarismo truculento dos nossos Tribunais Superiores é apenas a espuma do fenômeno
Todos no Brasil hão de lembrar, pois faz parte da nossa recentíssima história, e foi indecente o bastante para se destacar mesmo num contexto habitualmente insalubre. Aconteceu em 13 de outubro de 2022. Nesse dia, a maioria dos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), imbuídos da tarefa de combater as “fake news” durante o período eleitoral — as quais, segundo a narrativa midiática dominante, haviam sido responsáveis pela vitória de Jair Bolsonaro no pleito anterior —, determinou a censura à produtora Brasil Paralelo, por conta de vídeos relembrando esquemas de corrupção envolvendo o então candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva.
Na decisão, o ministro Ricardo Lewandowski notabilizou-se por haver cunhado a expressão “desordem informacional”, denotando um tipo de “desinformação” que, embora recorrendo a notícias verdadeiras, induziam o público a extrair uma conclusão falsa e, pior ainda, prejudicial à imagem do candidato que Lewandowski e seus colegas queriam ver triunfar. Acompanhando o voto do colega — assim como haviam feito Cármen Lúcia (aquela da censura “excepcionalíssima”) e Benedito Gonçalves (aquele em cujo rosto rechonchudo o referido presidenciável aplicara tapinhas carinhosos) —, o presidente do tribunal, Alexandre de Moraes, explicou a teratologia jurídica: “É a manipulação de algumas premissas verdadeiras, onde se juntam várias informações verdadeiras, que ocorreram, e que trazem uma conclusão falsa, uma manipulação de premissas”. Voilá! Com essa pirueta retórica, estava autorizada a censura de qualquer informação ou opinião que pudesse pôr em xeque a nobre missão de eleger Lula e salvar a democracia trans (a ditadura socialista que se identifica como democracia).
Dizia eu que todos no Brasil hão de lembrar desse fato. O que nem todos no país sabem é que, por maior que seja a licença poética sempre reivindicada para a administração da justiça progressista (isso desde o célebre fatiamento do julgamento do impeachment de Dilma Rousseff), Lewandowski não tirou da própria cabeça a ideia de “desordem informacional”. Ocorre que o Brasil ocupa uma posição colonizada e subalterna num grande arranjo supranacional de poder que não seria exagerado chamar de Internacional da Censura, e os hábitos adotados tardiamente na colônia advêm de modismos criados na metrópole. Num tal esquema global de restrição da liberdade de expressão, esquema que abarca as elites política, financeira e comunicacional de boa parte do planeta, e no qual se imiscuem as esferas pública e privada, o partidarismo truculento dos nossos Tribunais Superiores é apenas a espuma do fenômeno, mimetizando uma série de iniciativas provenientes do assim chamado Primeiro Mundo. No caso da “desordem informacional”, dos EUA.
Em 15 de novembro de 2021, enquanto no Brasil se comemorava (ou se lamentava) a “proclamação” (ou o golpe de instauração) da República, uma organização sem fins lucrativos chamada Instituto Aspen — cujo objetivo declarado é criar “uma sociedade livre, justa e igualitária” — publicava um documento intitulado “Relatório Final da Comissão sobre Desordem Informacional”. Em seu website, a referida comissão (que tem entre os membros o príncipe Harry, mais conhecido como marido de Meghan Markle) descreve seu propósito nos seguintes termos: “Esta iniciativa busca identificar e priorizar as fontes e as causas mais críticas de desordem informacional, oferecendo uma série de ações de curto prazo e metas de longo prazo para auxiliar o governo, o setor privado e a sociedade civil a lidarem com a crise contemporânea de fé nas principais instituições”.
O complexo industrial da censura combina métodos ortodoxos de manipulação psicológica — muitos deles desenvolvidos pelas Forças Armadas norte-americanas durante a Guerra ao Terror — com ferramentas tecnológicas altamente sofisticadas
A “Comissão sobre Desordem Informacional” e o instituto que a sedia fazem parte de uma vasta rede de organizações e iniciativas que, sob o pretexto de combater as “fake news” e o “discurso de ódio”, tem como único propósito o controle do fluxo de informações e opiniões na internet. Como meio para esse fim, e atuando de maneira notavelmente coordenada, a rede lança mão de uma sofisticada engenharia de censura, bem como de suas próprias campanhas de desinformação e assassinato de reputação. A complexa estrutura começou a ser destrinchada há alguns dias pelo jornalista Michael Shellenberger, em depoimento a um comitê da Câmara dos Deputados dos EUA (U. S. House of Representatives) que investiga o uso das estruturas do governo federal para a perseguição política a adversários, e, mais particularmente, o fomento do deep state norte-americano à censura doméstica e a operações de infowar lançadas entre os anos de 2016 e 2022.
Junto com seus colegas Matt Taibbi e Bari Weiss, Shellenberger foi um dos primeiros jornalistas a terem acesso em primeira mão aos assim chamados “Twitter Files”, entregue-lhes diretamente por Elon Musk, o novo dono do Twitter. Como se sabe, os documentos revelam um perturbador conluio entre agências governamentais, instituições acadêmicas, ONGs, redes sociais e o Partido Democrata para censurar cidadãos a respeito de vários assuntos, incluindo a origem do Sars-CoV-2, a eficácia e a segurança das vacinas, o laptop de Hunter Biden, a integridade eleitoral, as mudanças climáticas, os combustíveis fósseis, entre outros.
Em seu depoimento no Congresso norte-americano, Shellenberger descreve com riqueza de detalhes o que chama de “complexo industrial da censura”. O termo remonta ao célebre discurso de despedida proferido em 1961 por Dwight Eisenhower, no qual o então presidente norte-americano alertava sobre “a influência indevida exercida pelo complexo militar-industrial”. Eisenhower temia que esse “complexo”, formado por empresas contratadas pelo governo e o Departamento de Defesa, pudesse “ameaçar nossas liberdades e os nossos processos democráticos”. Temia, em suma, que as políticas públicas “se tornassem cativas de uma elite científica e tecnológica”.
De acordo com Shellenberger, os temores de Eisenhower tinham fundamento, pois hoje os impostos norte-americanos têm servido para sustentar justamente um complexo industrial da censura dirigido por uma elite científica e tecnológica que ameaça a mais paradigmática democracia moderna. O jornalista cita uma série de organizações — como o próprio Instituto Aspen, o Observatório da Internet da Universidade de Stanford, a Universidade de Washington, dentre muitas outras — que mantêm laços estreitos e totalmente indevidos com o Departamento de Defesa, a CIA e outros órgãos de Estado. Sua atuação não consiste em propor um debate público sobre, por exemplo, os limites da Primeira Emenda à Constituição Norte-Americana, que impede o Congresso de restringir direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e de imprensa. Em vez disso, o que fazem é criar listas negras de pessoas-alvo, e em seguida pressionar e chantagear as redes sociais para que as censurem, reduzam-lhes o alcance e eventualmente as excluam definitivamente da ágora virtual.
O complexo industrial da censura combina métodos ortodoxos de manipulação psicológica — muitos deles desenvolvidos pelas Forças Armadas norte-americanas durante a Guerra ao Terror — com ferramentas tecnológicas altamente sofisticadas, incluindo a inteligência artificial. Seus integrantes — muitos deles oriundos dos setores de contraterrorismo e defesa nacional — passaram do combate aos terroristas da al-Qaeda ou do Estado Islâmico, ou aos hackers russos e chineses, para o monitoramento e a perseguição contra cidadãos norte-americanos comuns e figuras públicas politicamente indesejáveis. O parâmetro para o recurso ao aparato governamental de defesa e inteligência foi rebaixado de combate ao terrorismo para combate ao “extremismo” e, em seguida, à “má informação (misinformation)”. Ou seja, para mover os recursos do Estado a fim de impedir a atuação política de uma pessoa, o governo e seus aparelhos já não precisam provar que ela é terrorista ou extremista. Basta alegar que a opinião por ela expressa nas mídias sociais é errada.
As operações de informação do complexo visam a influenciar e até mesmo dirigir a imprensa tradicional. Para isso, uma prática tradicional do jornalismo chegou a ser interditada. Desde ao menos o começo dos anos 1970, quando o The Washington Post e o The New York Times decidiram publicar documentos sigilosos do Pentágono sobre a Guerra do Vietnã, os repórteres têm entendido como dever profissional a divulgação de material vazado, desde que o conteúdo seja de interesse público, e sobretudo quando se trata de fiscalizar a atuação de políticos e agentes do Estado. Ocorre que, em 2020, o já referido Instituto Aspen e o Centro de Política Cibernética da Universidade de Stanford orquestraram um grande lobby com jornalistas, instando-os a abandonarem essa regra tácita e não cobrirem informação vazada, de modo a prevenir a disseminação de “notícias falsas”.
Para justificar a censura, os integrantes do complexo alegam querer proteger a sociedade dos males concretos causados pela “desinformação”. O problema é que sua definição de “mal” é muito mais ampla e nebulosa do que a prevista em lei. Os “Twitter Files” revelaram, por exemplo, que, em 2021, pesquisadores de Stanford reunidos numa iniciativa chamada “Virality Project” entraram em contato com executivos da rede social para exigir que fossem censuradas postagens que, apesar de veicular informações verdadeiras, pudessem causar “hesitação quanto à vacinação”. Ou seja, aquilo que começa sob o pretexto de impedir a circulação de notícias falsas logo degenera em censura a informações verdadeiras, porém perigosas (para quem?). E se o leitor lembrou aqui da “desordem informacional”, ele está na pista certa.
Para notar a gravidade da atuação do complexo, basta saber que o Departamento de Segurança Nacional dos EUA (DHS) criou formalmente um escritório de censura doméstica. A informação foi publicada no portal The Intercept, que teve acesso a documentos vazados da agência. Um relatório interno propunha enquadrar qualquer postagem que a agência considerasse “desinformativa” em relação ao processo eleitoral como um ataque cibernético a uma “estrutura crítica” do Estado norte-americano. Ou seja, de um dia para o outro, o emissor de uma opinião “errada” era considerado um subtipo de terrorista.
Uma mesma cosmovisão parece povoar a mente dos membros do complexo, uma cosmovisão essencialmente elitista. Os censores imaginam-se capazes, ou ao menos mais capazes que os demais cidadãos, de determinar categoricamente a verdade ou a falsidade de uma determinada informação, bem como detectar intenções ocultas e espúrias por detrás de uma opinião. Os portadores dessa ideologia acreditam que os assim chamados “especialistas em desinformação” — como vários deles se definem — estão em posição de exigir censura do que definem como má informação (misinformation) ou desinformação (disinformation). Resta que se apresentar como “especialista em desinformação” é o mesmo que se apresentar como “especialista na verdade”, algo que, assim formulado, soaria obviamente ridículo e cabotino. Tão ridículo e cabotino quanto, digamos, um magistrado de província que, do alto de uma trajetória profissional fracassada, resolvesse posar de “editor de um país inteiro”.
Portanto, a pretensão de sanear o debate público mediante a restrição da circulação de “notícias falsas” é mesmo ridícula e cabotina. Mas ela seria apenas isso — um surto quase cômico de arrogância — caso as intenções de seus proponentes fossem realmente as declaradas. Hoje, todavia, sabemos que não o são. O objetivo final dos censores não é o bem comum, na hipótese de que o controle da desinformação o pudesse prover. Como bem resume Shellenberger: “O complexo industrial da censura é uma rede de instituições governamentais, não governamentais e acadêmicas ideologicamente alinhadas, que descobriram nos últimos anos o poder da censura para proteger os próprios interesses contra a volatilidade e os riscos do processo democrático”.
Resta que o complexo transcende e muito as fronteiras norte-americanas, consistindo hoje, como já o sugerimos, numa vasta Internacional da Censura. Os brasileiros estamos ficando bem acostumados com a franquia local do negócio, e a sensibilidade de muitos já está treinada para esperar arbítrio, censura e perseguição ali onde se escutam palavras melodiosas como “democracia”, “debate saudável” e “direitos humanos”. Afinal, não se faz um totalitarismo sem uma boa pitada de açúcar e sentimentalismo. Na iminência de espancar, torturar e matar centenas de chineses durante a Revolução Cultural, o que disse Mao Tsé-tung não foi algo como: “Morram, seus desgraçados!”. Não, o que lhe saiu da boca em vez disso foi: “Deixem que floresçam cem flores”. Portanto, deixem que agora floresçam as flores da censura. Afinal, se as palavras machucam, recomenda-se o silêncio saneador. Ou, como diria Karl Kraus: “Quem tiver algo a dizer, dê um passo à frente e cale-se!”.
Revista Oeste
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2023/03/a-internacional-da-censura-por-flavio.html
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