por Silvio Navarro e Loriane Comeli
Com ideias 'geniais' e fixação pelo Porto de Santos, Márcio França irrita até Lula e pode promover um verdadeiro retrocesso no saneamento básico do país
Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva finalmente terminou de nomear seu imenso primeiro escalão do governo, o brasileiro percebeu que o país poderia retroceder 20 anos em sua história. Um ministro, contudo, parece mais empenhado na tarefa do que os demais: Márcio França, cota do PSB, colocado na pasta de Portos e Aeroportos.
Em menos de três meses, França já ameaçou desfigurar o Marco do Saneamento Básico, impedir privatizações, como a do Porto de Santos e de companhias estaduais de trens urbanos, de água e esgoto — especialmente a Sabesp —, e rever as regras da navegação de cabotagem. Do seu gabinete, também partiu a ideia genial de imprimir 12 milhões de passagens aéreas, ao custo de R$ 200, para estudantes, funcionários públicos e aposentados.
No caso dos bilhetes aéreos, a fala provocou mal-estar com o ministro da Casa Civil, Rui Costa, que não sabia do plano de voo. Como o seu gabinete fica no andar superior ao de Lula, Rui Costa foi se queixar pessoalmente com o chefe. O presidente tratou do assunto publicamente, mas sem citar o nome de França, para não inflamar uma crise com o partido do vice, Geraldo Alckmin. Nenhum ministro, entretanto, teve dúvida de que o recado tinha endereço certeiro: era para Márcio França, cuja ideia inovadora amanhecera em todas as manchetes da imprensa. Até agora ele não disse o valor da contrapartida para as empresas aéreas que o governo terá de bancar — nem de onde vai sair esse dinheiro.
“É importante que, antes de anunciar, os ministros façam uma reunião com a Casa Civil, para que a Casa Civil discuta com a Presidência, e a gente possa chamar o autor da genialidade”, afirmou. “Não queremos propostas de ministros. Todas as propostas de ministros devem ser transformadas em propostas de governo”
O caso não foi o único que irritou Lula. O ministro também fez uma série de pronunciamentos contra a privatização do Porto de Santos, no litoral paulista, às vésperas do embarque da comitiva brasileira para a China. O país asiático é o principal parceiro comercial do Brasil e o destino de US$ 90 bilhões em exportações no último ano. Catorze Estados têm a China como principal destino do desembarque de mercadorias, sobretudo contêineres de grãos, carne e celulose. Outros 12 importam dos chineses grande volume de eletrônicos, acessórios e peças para a indústria de transformação. A porta de entrada e de saída é justamente o Porto de Santos. A China foi surpreendida com a insistência do ministro em “atravessar” o processo de privatização.
Além disso, Lula resolveu levar para a China mais de 240 empresários, a maioria do setor agropecuário. O escoamento da produção dessas empresas é feito por meio de contêineres de Santos. Eles também não gostaram da chegada do ministro à mesa de negócios.
Saneamento básico
Poucas ações na esfera pública podem mudar tanto a vida de populações inteiras quanto o acesso ao saneamento básico. O marco legal para o setor está em vigor há pouco mais de dois anos, aprovado durante o governo de Jair Bolsonaro, e já produziu resultados.
Antes mesmo de tomar posse, Márcio França se juntou ao deputado Guilherme Boulos (Psol-SP), líder do movimento dos sem-teto, para propor a revisão do Marco Regulatório do Saneamento. O argumento é que o Estado não deve entregar o serviço para a iniciativa privada
A estratégia foi bem simples: depois dos vencimentos dos contratos, as empresas públicas terão de competir com empresas privadas em licitação. A meta é a universalização do saneamento em dez anos: água potável, tratamento de esgoto, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e águas de chuvas. Segundo dados do Instituto Trata Brasil, 35 milhões de pessoas não tinham acesso à água tratada e 100 milhões ao serviço de esgoto até 2020.
Desde então, o país realizou dez concorrências públicas. Mais de 200 cidades já foram beneficiadas, num total de 20 milhões de pessoas só com as primeiras obras. O investimento privado foi de R$ 70 bilhões. Antes de deixar o Ministério do Desenvolvimento Regional, no governo Jair Bolsonaro, o hoje senador Rogério Marinho disse que o país precisa de R$ 700 bilhões para resolver todos os problemas. Ou seja, há um longo caminho pela frente — se o governo Lula deixar.
Antes mesmo de tomar posse, Márcio França se juntou ao deputado Guilherme Boulos (Psol-SP), líder do movimento dos sem-teto, para propor a revisão do Marco Regulatório do Saneamento. O argumento é que o Estado não deve entregar o serviço para a iniciativa privada. “A regra resultou na não participação social e dos agentes de políticas públicas na formulação das normas”, dizia o texto. Eles ajudaram a redigir o relatório apresentado pelo grupo de mil pessoas que se reuniu em Brasília, durante dois meses, na chamada transição de governo.
O plano de França e Boulos era retirar da Agência Nacional de Águas (ANA) a competência sobre regras de saneamento e passá-las para as mãos do ministro das Cidades. Sugeriram criar a Secretaria Nacional do Saneamento. Na época, tanto França quanto Boulos queriam a cadeira de ministro das Cidades. Nenhum dos dois foi escolhido. França, contudo, continua fazendo lobby contra as empresas privadas.
“A posição da maior parte dos partidos que sustentam a coligação do presidente Lula no Congresso quando foi votar o marco é que é muito prejudicial o processo de privatização do saneamento”, disse Boulos. “Os decretos que regulamentam o Marco do Saneamento, a gente sugeriu a revogação”, afirmou França.
Ministro atracado
Um dos avanços da gestão de Tarcísio de Freitas, hoje governador de São Paulo, na área de infraestrutura, foi a chamada BR do Mar, que trata da navegação de cabotagem — ligação entre portos do país. O Brasil tem 8,5 mil quilômetros de costa. A cabotagem atende hoje a 13% do transporte de carga. A medida flexibilizou o fretamento de navios com bandeira estrangeira para executar o serviço, já que a indústria naval brasileira não dá conta da demanda. O ministro Márcio França é contra, pela “soberania nacional”.
A ideia do socialista é um retrato da vanguarda do atraso: basta calcular quantos caminhões lotados de carga cabem num único navio. Outro detalhe: não há acidentes, avarias na carga e polui menos o ambiente. Então resta a pergunta: qual a importância da bandeira estrangeira no navio?
O ministro voltou a falar sobre o assunto num seminário sobre o tema nesta semana. Em seguida, ouviu o recado de Wilson Lima Filho, diretor da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). “É importante para os investidores saber que as regras não vão mudar durante o jogo.”
Márcio França foi prefeito da cidade litorânea de São Vicente duas vezes. Governou o Estado de São Paulo por oito meses, em 2018, quando Alckmin concorreu à Presidência. Foi secretário estadual. Sempre foi conhecido pela boa relação com o empresariado. Durante a campanha eleitoral do ano passado, gostava de dizer que era “a direita da esquerda”.
Na semana passada, o partido Novo questionou o “Bolsa Avião”, com assentos a R$ 200. “É sabido que tal nicho é altamente regulamentado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e que envolve interesses setoriais das mais diversas naturezas”, disse o deputado gaúcho Marcel Van Hattem.
Por enquanto, o que se pode afirmar é que Márcio França talvez esteja apenas sofrendo de um surto de socialismo aos 60 anos de idade.
Revista Oeste
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2023/03/o-ministro-do-atraso-por-silvio-navarro.html
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