por Cristyan Costa
A falta de regularização da mineração artesanal, prevista na Constituição, a desinformação e o preconceito contra garimpeiros aumentam a agonia da categoria
“Garimpo ameaça indígenas isolados em terra ianomâmi”; “Avanço do garimpo sufoca rios e prejudica povos originários”; “Garimpeiros atacam aldeia indígena e abrem fogo contra moradores”. Essas e outras manchetes publicadas recentemente na velha imprensa descrevem como um universo uniforme uma realidade que representa apenas uma pequena parte dos quase 1 milhão de garimpeiros que existem hoje no Brasil. Em vez de vilões, criminosos, a maioria desses trabalhadores é gente simples, que mal sabe escrever o nome. Pessoas que, por inúmeras adversidades da vida, como o desemprego e falta de acesso à educação, encontraram no garimpo um meio de garantir seu sustento.
Aldo Rebelo, ex-ministro da Defesa e profundo conhecedor da Amazônia, afirma que o problema envolvendo o garimpo no Brasil não é de agora. A gênese está nas décadas de 1970 e 1980, quando o regime militar estimulou a mineração no Norte do país, sobretudo em Serra Pelada, no Pará (PA). Rebelo lembrou que, com o tempo, principalmente durante os governos civis, essas pessoas foram abandonadas à própria sorte. Sem recursos para voltar à terra de origem e sem assistência do Estado, muitos acabaram se estabelecendo no local. A falta de estudo e experiência com outras atividades fez com que não conseguissem se adaptar à mecanização do trabalho, com a chegada das novas tecnologias.
Rebelo criticou a demonização que está sendo feita dos garimpeiros na mídia e defendeu a atividade legal. Ele cobrou ainda das autoridades o cumprimento da Constituição e do Estatuto do Garimpeiro, aprovado durante o segundo mandato de Lula — à época, Rebelo era presidente da Câmara dos Deputados. “O artigo 174 da Carta Magna protege essa atividade”, ensinou. “Esse dispositivo, no parágrafo 3º, diz que o Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção ambiental e o conjunto social dos garimpeiros.” Conforme o ex-ministro da Defesa, o ofício dentro da lei evita inclusive o uso do mercúrio, que pode contaminar a água. Isso porque a legislação estabelece inclusive normas sobre como os metais preciosos têm de ser extraídos.
Um dos pontos mais criticados do decreto de Lula é a falta de um plano para tirar os quase 15 mil garimpeiros que estavam na terra ianomâmi e reinseri-los na sociedade
O ex-ministro usou os indígenas mundurucus como exemplo. De acordo com Rebelo, a tribo está dividida, visto que há um grupo que promove o garimpo do ouro em suas terras, em conflito com outros que são contrários. Na área ianomâmi, há o garimpo ilegal e aquele realizado com a tolerância de lideranças. “São questões complexas que precisam ser discutidas”, disse. “Esse problema não pode continuar sendo tratado com desdém. Vamos abandonar e criminalizar essas pessoas sem oferecer a elas alternativas? Vamos permitir que elas sejam usadas como mão de obra do narcotráfico? Vão ser tratadas como um problema social ou caso de polícia? Alguém tem de olhar para essa gente.”
Para além das páginas dos jornais
“Engana-se quem pensa que todo mundo que entra nesse ramo é mal-intencionado e quer ficar rico”, afirmou José Altino Machado, diretor da Associação dos Moradores do Alto Tapajós e fundador da União Sindical dos Garimpeiros da Amazônia Legal. “A maioria não teve oportunidade na vida e viu no garimpo uma forma de dar de comer para a própria família. Tirando as pessoas ruins, que existem em qualquer trabalho, é uma atividade honrosa, praticada inclusive por indígenas, como os ianomâmis.”
A descrição de José Altino vai de encontro com o relato de um paraense que, depois de perder o emprego numa fazenda, aos 30 anos, se mudou com a mulher e os dois filhos pequenos do interior do Estado para Boa Vista, capital de Roraima. Ele ouvira falar sobre os garimpeiros e a existência de ouro na Amazônia. Com a ajuda de parentes, conseguiu dinheiro para chegar ao destino. Após ser auxiliado por vizinhos, juntou-se ao grupo em busca de uma vida melhor. A nova rotina incluía 13 horas de trabalho sob o sol escaldante, distância da família, machucados em razão de acidentes e o perigo de ataques de animais, além de doenças, como a malária.
Apesar de admitir já ter extraído ouro de terras indígenas, incluindo a dos ianomâmis, o homem afirma que sempre procurou dar alimentos ou outra contrapartida aos povos do local. Ele contou ainda que há pessoas dessa etnia que também são garimpeiros, embora em menor número. “É claro que tem gente má nesse meio que quer levar vantagem sobre os índios”, ponderou. “Mas não é todo mundo. O que temos visto é a mídia tentando criminalizar os garimpeiros como um todo, sendo que há muitas exceções.”
Hoje com 40 anos, o homem, que não quis se identificar por medo de represálias, teve de sair às pressas da terra ianomâmi, em direção a Boa Vista, com um grupo de trabalhadores que fugiu usando uma canoa e outros meios de locomoção. Isso porque, no fim de janeiro, o presidente Lula assinou um decreto proibindo o garimpo ilegal naquela região, em virtude de denúncias de violações de direitos humanos veiculadas pelo programa Fantástico, da Rede Globo. A imprensa tradicional tem responsabilizado os garimpeiros por todos os problemas que ocorrem com os indígenas.
Sem luz no fim do túnel
Desempregado e com pouco estudo, o homem não sabe o que vai fazer. Essa é a situação de milhares de famílias que tiravam do garimpo o seu sustento naquela região. Jailson Mesquita, coordenador político do Movimento Garimpo É Legal, conta que muitas pessoas que saíram da terra ianomâmi em direção à capital de Roraima estão sem um norte. “Aqui em Boa Vista, a maioria depende de doações”, disse. “Eles não têm reserva financeira e não vão aguentar muito tempo sem uma solução por parte do Estado. A nossa luta é por essas pessoas. É uma crise grave e antiga, à qual os poderosos se esquivaram por muito tempo.”
Ainda segundo Mesquita, ao longo de três anos, seu movimento enviou mais de 20 proposições ao governo federal de demarcação para terras exclusivas do garimpo em Roraima, na tentativa de coibir a prática ilegal. “Queremos fazer o garimpo regularizado, como prevê a Constituição, e de forma sustentável”, garantiu Mesquita. “Mas, tão logo tentamos isso, a imprensa disse que era ‘legalização de garimpo em terra indígena’ e inviabilizou a demanda. O Brasil demarca muita terra para indígenas e não vê a situação dos garimpeiros. Ao mesmo tempo, as grandes mineradoras exploram à vontade. Dessa forma, muitas famílias ficam sem alternativas e caem na ilegalidade.”
Atualmente, os senadores de Roraima, Chico Rodrigues (PSB), Dr. Hiran (PP) e Mecias de Jesus (Republicanos), fazem parte de uma comissão temporária externa que foi criada no Parlamento, no começo de fevereiro, para acompanhar in loco a saída dos garimpeiros das terras ianomâmis, no prazo de 120 dias. Os três já explicitaram a preocupação em socorrer trabalhadores do garimpo e não impedir completamente a atividade.
Rodrigues, que foi eleito presidente do colegiado, defendeu a inclusão dos garimpeiros em programas sociais do governo federal. “Se formos traçar um paralelo hoje, os refugiados venezuelanos recebem os benefícios dos programas sociais do governo”, constatou. “Então, imaginem os garimpeiros, que são brasileiros? Precisam também, até para mitigar o sofrimento que vão ter naturalmente quando saírem daquelas áreas.”
“Garimpeiro que tem fome vai terminar tendo uma atitude de conflito para conseguir comida”, disse Dr. Hiran. “Tudo isso nos preocupa. Que nós possamos também ajudar os garimpeiros a saírem da área indígena e, a médio e longo prazo, dar auxílios para que essas pessoas não voltem.
Ação malfeita e complicada
Um dos pontos mais criticados do decreto de Lula é a falta de um plano para tirar os quase 15 mil garimpeiros que estavam na terra ianomâmi e reinseri-los na sociedade. Por causa disso, muitas famílias entraram em desespero e começaram a traçar rotas de fuga. Relatos que circulam em grupos de WhatsApp de garimpeiros mostram que pilotos de helicópteros se aproveitaram da situação para cobrar até R$ 15 mil por pessoa, em voos clandestinos, para Boa Vista.
Apenas seis dias depois da assinatura do decreto, o governo liberou um corredor no espaço aéreo para o resgate de pessoas. Quem não conseguiu escapar pelo ar teve de enfrentar longas caminhadas por dias na mata, percursos em barcos no Rio Uraricoera — que podem durar até dois dias — e caminhadas por terra, mais precisamente por 30 quilômetros de uma estrada vicinal que conecta uma vila e um porto improvisado, usados como base para o garimpo.
Em um vídeo que circula nas redes sociais, um grupo de mulheres pede ajuda ao Ministério dos Direitos Humanos para sair da terra ianomâmi, por estarem sem mantimentos. “A gente está vindo aqui para pedir para vocês compartilharem esse vídeo no Facebook, para pedir que acionem os direitos humanos”, apela uma delas. “Não estão resgatando ninguém, a gente está presa aqui, e daqui uma semana a gente não vai ter mais alimentação. Os indígenas vão começar a se estressar, porque é a gente que dá alimento.”
O coordenador do Movimento Garimpo É Legal informou que, no momento, há uma articulação com o Ibama e demais autoridades para tentarem tirar da terra indígena, de forma pacífica, os garimpeiros que ainda estão lá. “Gente sem recurso continua presa”, afirmou Jailson Mesquita. “São mais de 1,5 mil pessoas.” Nenhuma tem dinheiro. Todos pedem socorro.
0 comments:
Postar um comentário