por Herman Benjamin
O Brasil atualmente enfrenta várias crises simultâneas.
Nenhuma delas afeta mais o pobre e compromete o futuro do País do que a da insegurança e a da corrupção.
É o operário que tem sua marmita tomada à mão armada.
É o aluno de escola pública de periferia assassinado a troco de um tênis.
É a mãe diarista que sai de casa sem saber se voltará para sua família.
É a corrupção que saqueia os cofres públicos e nega a todos os imprescindíveis investimentos em saúde, em educação, em transporte e também na própria segurança pública.
Como havia prometido, o ministro Sérgio Moro apresentou proposta de reforma pontual do nosso modelo penal e processual penal: o “Projeto de Lei Anticrime”.
O texto, por óbvio, não se propõe, nem deve ser assim lido, como chave mágica para resolver em definitivo o drama da segurança pública e do combate à corrupção.
Seus objetivos parecem mais modestos, ou seja, fechar algumas das janelas legais que garantem a impunidade de criminosos, tanto os que matam e roubam, como os que dilapidam o patrimônio nacional.
O conteúdo do projeto é, no geral, inovador e necessário.
Mas também corajoso, por não se limitar a apresentar diagnósticos.
Faz, ao contrário, claras opções legislativas e de política criminal.
Certamente, como todo projeto de lei, será aperfeiçoado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
Algumas das mais importantes alterações visam impedir que, pela procrastinação do processo, a sanção penal deixe de ser aplicada, vire uma quimera, inclusive pela prescrição.
O criminoso, sobretudo o do colarinho-branco, conta com a desconexão entre o “tempo da vida” e o “tempo do processo penal”.
É comum que a justiça para as vítimas e para a sociedade nunca chegue, não por falta de provas dos graves crimes cometidos, mas por emperramento das instituições judiciais, incapazes de resistir a manobras processuais de todo o tipo.
Uma verdadeira perversão das finalidades do processo penal, que se transmuda em instrumento de negativa de justiça.
Não é à toa, pois, que o texto traz alterações no regime da prescrição. Aqui, a maior novidade é o dispositivo que impede o curso do prazo prescricional na pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores, estes quando inadmissíveis.
A prática judicial comprova o uso e abuso de embargos de declaração e recursos aos Tribunais Superiores absolutamente incabíveis e protelatórios, objetivando apenas viabilizar, adiante, a prescrição.
Ora, sabe-se que não há justiça quando a sanção, caso escape da prescrição, vem efetivada anos depois do crime, tendo o criminoso permanecido por décadas inserido na sociedade e no meio das suas próprias vítimas, o que gera inevitável e perniciosa sensação de impunidade.
Outra importante inovação do projeto é a possibilidade do acordo de não persecução penal, medida de crescente uso em todo o mundo, em países democráticos que influenciaram, e influenciam, a formação do Direito brasileiro.
A proposta, contudo, vai além da “plea bargain”, preocupando-se em corrigir distorções, contribuindo para a efetividade e a concretização da justiça criminal.
Em vários pontos, o projeto apenas incorpora o que a jurisprudência dos Tribunais Superiores já vem admitindo.
É o caso, por exemplo, da execução da pena privativa de liberdade depois da condenação em segunda instância. Não que a previsão legal expressa seja desimportante.
Ao contrário, mostra-se fundamental para ampliar a segurança jurídica.
Destacam-se alterações no rito do Tribunal do Júri. São incontáveis os casos de homicídios dolosos nos quais a condenação ocorre décadas depois do crime, abrindo espaço para a prescrição e para o sentimento social de impunidade.
Significativa parcela dessa anomalia tem como causa os recursos contra a sentença de pronúncia, que antecede o julgamento em plenário.
O texto apresentado prevê que as impugnações à pronúncia não mais suspendam o julgamento.
Com isso, o processo poderá ser levado a plenário mesmo que o recurso permaneça tramitando por anos.
Há também no projeto medidas que cuidam do endurecimento das penas.
Aqui, a maior novidade é o estabelecimento do regime inicial de cumprimento fechado para o réu reincidente.
Pela lei atual, o reincidente tem direito a iniciar a execução penal em regime semiaberto, desde que a condenação seja inferior a quatro anos.
Ainda na fixação do regime de cumprimento da pena, a proposição torna obrigatória, como regra geral, a imposição do regime inicial fechado aos condenados por peculato, corrupção ativa e passiva e por roubo qualificado.
Os “crimes do colarinho-branco” sempre foram tratados com certa benevolência – por distorção cultural, mas também legal e jurisprudencial –, vistos com carga de lesividade menor do que os crimes de sangue ou de violência e, por isso mesmo, suavemente punidos.
A proposição, corretamente, agrava a situação do infrator nesses tipos penais e dá resposta mais adequada a tal comportamento extremamente nefasto.
O projeto avança no aprimoramento e modernização do ordenamento jurídico penal e processual penal brasileiro.
Chega em boa hora.
A Nação passa por momento de depuração ética e exige o enfrentamento da criminalidade, tanto a violenta, como a organizada de qualquer natureza, inclusive a mais organizada de todas – a corrupção.
Tal sentimento popular legítimo, que nada apresenta de anticivilizatório, deve-se refletir nas leis que regem a sociedade.
Claro, sempre de maneira a evitar radicalismos e retrocessos, com os olhos bem atentos às garantias fundamentais, conquista inalienável de gerações da qual não se deve, nem se precisa, abrir mão no combate ao crime violento e à corrupção.
*MINISTRO DO STJ E DIRETOR DA ESCOLA NACIONAL DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE MAGISTRADOS
O Estado de São Paulo
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