por Roberto DaMatta
FOTO ANDRADE JUNIOR
Envergonha
e desperta comiseração o cataclismo de lama de Brumadinho, graças aos
trabalhos da nossa maior mineradora. A Vale, cuja grandeza global também
engendrou um vale de lágrimas. E criou o momento crítico, trágico e
indescritível (mas característico) dos imprevistos que fazem parte do
que nós chamamos de “vida”. O maior e o mais poderoso engendrando o pior
e o mais tenebroso.
Essas ironias nos acompanham, pois todo inesperado — e acima de tudo os
planejados — acentua como é tênue o nosso trajeto, ao mesmo tempo que
remarca como aquilo que traz progresso contém simultaneamente sua cota
de atraso.
“É o projeto da casa, é o corpo na cama/ É o carro enguiçado, é a lama, é
a lama/ É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã/ É um resto de
mato, na luz da manhã/ São as águas de março fechando o verão/ É a
promessa de vida no teu coração.”
É preciso ir além deste harmonioso rendado de imagens paradoxais,
reunidas pelo inconsciente mágico de Tom Jobim; quando — num exercício
de livre associação promovido pela continuidade da música — remete a
alegrias e angústias?
Por favor, leitor, releia e relembre se puder toda a letra.
É fácil falar de mudança, transformação e revolução. É mais tranquilo
ainda reiterar os erros e realizar o nosso exercício favorito:
atrapalhar o Brasil através de normas, governos, políticos e partidos.
Até votar uma Mesa Diretora de um Senado recém-empossado transforma-se
numa vergonha, mas — eis o tom do momento liminar e paradoxal — confirma
as renovações dos fins de sistemas e etapas.
Estou seguro de que estamos dispostos a mudar. E, mais que isso: estamos
convencidos de que somos obrigados a mudar. As urnas mostraram um
sistema cultural que chegou ao seu limite, mas não terminou.
O cataclismo da Vale traz à tona os lugares-comuns de sempre: punir,
denunciar e intrigar, mas, singularmente, revela o mais difícil de
aprender: o laço amistoso dos jogos de favores entre pessoas no sentido
de favorecer seus interesses e dissolver coerências ideológicas. O que
se observa claramente é o fetichismo das normas (e ideologias) por
contraste com uma esperada e necessária eficácia de preocupações
preventivas. As barragens não conseguem barrar o jogo político e
econômico baseado no favor e naquilo que caracteriza o nosso secular
elitismo: a simpatia pessoal que privilegia os que chegam ao clube do
poder à brasileira.
O famoso “esse eu conheço!” começa a perder força, iniciando timidamente
uma aguda consciência dos limites entre os cargos e os papéis sociais
em suas imposições. E, com os limites consequentes, o dever de dizer não
aos amigos e, acima de tudo, a si mesmo. Esse ponto de inflexão da
boa-fé, sem o qual não há mortalidade, é — permitam-me — o traço central
da democracia. Esse regime que obriga a distinguir os interesses
pessoais dos impessoais, coletivos ou públicos. Coisa fácil de falar
mas, até onde sei — leiam o meu “A casa & a rua” — muito difícil de
fazer no Brasil.
A fusão de pessoas e papéis engendra um estilo onipotente de poder. Ele
começa na igualdade legal, mas, depois das polarizações, promessas e
posses, retorna às suas zonas de conforto e restabelece a velha
aristocracia dos cargos devidamente apropriados por seus atores.
A expectativa é que o novo governo tenha uma aguda percepção dos
limites, dos deveres e das obrigações coletivas de todos os cargos
públicos. O sistema político brasileiro tem que mudar no sentido de
conter-se e diminuir o seu poder, e aí temos um enorme desafio para uma
elite que sempre governou pensando o justo oposto. Pois jamais deixou de
ampliar e concentrar o seu poder.
PS: Como prova desses tempos de mudança e de aprendizado com a lama, nos
quais o velho e o novo surgem misturados, revelando a relatividade dos
polos, finalmente a esquerda vai apoiar no Senado da República um
coronel puro-sangue.
O Globo
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