Jornalista Andrade Junior

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

"Aprender com a lama em Brumadinho?",

por Roberto DaMatta

FOTO ANDRADE JUNIOR
Envergonha e desperta comiseração o cataclismo de lama de Brumadinho, graças aos trabalhos da nossa maior mineradora. A Vale, cuja grandeza global também engendrou um vale de lágrimas. E criou o momento crítico, trágico e indescritível (mas característico) dos imprevistos que fazem parte do que nós chamamos de “vida”. O maior e o mais poderoso engendrando o pior e o mais tenebroso.

Essas ironias nos acompanham, pois todo inesperado — e acima de tudo os planejados — acentua como é tênue o nosso trajeto, ao mesmo tempo que remarca como aquilo que traz progresso contém simultaneamente sua cota de atraso.
“É o projeto da casa, é o corpo na cama/ É o carro enguiçado, é a lama, é a lama/ É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã/ É um resto de mato, na luz da manhã/ São as águas de março fechando o verão/ É a promessa de vida no teu coração.”
É preciso ir além deste harmonioso rendado de imagens paradoxais, reunidas pelo inconsciente mágico de Tom Jobim; quando — num exercício de livre associação promovido pela continuidade da música — remete a alegrias e angústias?
Por favor, leitor, releia e relembre se puder toda a letra.
É fácil falar de mudança, transformação e revolução. É mais tranquilo ainda reiterar os erros e realizar o nosso exercício favorito: atrapalhar o Brasil através de normas, governos, políticos e partidos. Até votar uma Mesa Diretora de um Senado recém-empossado transforma-se numa vergonha, mas — eis o tom do momento liminar e paradoxal — confirma as renovações dos fins de sistemas e etapas.
Estou seguro de que estamos dispostos a mudar. E, mais que isso: estamos convencidos de que somos obrigados a mudar. As urnas mostraram um sistema cultural que chegou ao seu limite, mas não terminou.
O cataclismo da Vale traz à tona os lugares-comuns de sempre: punir, denunciar e intrigar, mas, singularmente, revela o mais difícil de aprender: o laço amistoso dos jogos de favores entre pessoas no sentido de favorecer seus interesses e dissolver coerências ideológicas. O que se observa claramente é o fetichismo das normas (e ideologias) por contraste com uma esperada e necessária eficácia de preocupações preventivas. As barragens não conseguem barrar o jogo político e econômico baseado no favor e naquilo que caracteriza o nosso secular elitismo: a simpatia pessoal que privilegia os que chegam ao clube do poder à brasileira.
O famoso “esse eu conheço!” começa a perder força, iniciando timidamente uma aguda consciência dos limites entre os cargos e os papéis sociais em suas imposições. E, com os limites consequentes, o dever de dizer não aos amigos e, acima de tudo, a si mesmo. Esse ponto de inflexão da boa-fé, sem o qual não há mortalidade, é — permitam-me — o traço central da democracia. Esse regime que obriga a distinguir os interesses pessoais dos impessoais, coletivos ou públicos. Coisa fácil de falar mas, até onde sei — leiam o meu “A casa & a rua” — muito difícil de fazer no Brasil.
A fusão de pessoas e papéis engendra um estilo onipotente de poder. Ele começa na igualdade legal, mas, depois das polarizações, promessas e posses, retorna às suas zonas de conforto e restabelece a velha aristocracia dos cargos devidamente apropriados por seus atores.
A expectativa é que o novo governo tenha uma aguda percepção dos limites, dos deveres e das obrigações coletivas de todos os cargos públicos. O sistema político brasileiro tem que mudar no sentido de conter-se e diminuir o seu poder, e aí temos um enorme desafio para uma elite que sempre governou pensando o justo oposto. Pois jamais deixou de ampliar e concentrar o seu poder.
PS: Como prova desses tempos de mudança e de aprendizado com a lama, nos quais o velho e o novo surgem misturados, revelando a relatividade dos polos, finalmente a esquerda vai apoiar no Senado da República um coronel puro-sangue.

O Globo

































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