Ao contrário das pessoas privadas, cujos débitos são imediatamente executáveis e garantidos pelo respectivo patrimônio, o Estado brasileiro submete seus credores a rito mais custoso. Trata-se dos precatórios, forma de pagamento em vigor desde a Constituição de 1934. É a técnica por meio da qual a Fazenda Pública deve lançar os débitos judiciais transitados em julgado no orçamento do ano seguinte e, assim, pagá-los pela ordem cronológica.
O artigo 100 da Constituição dispõe que tal rito se aplica aos “pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas” da União, estados, Distrito Federal e municípios. Em tese, os precatórios lançados no orçamento deveriam ser pagos no ano imediatamente seguinte. Mas isso só acontece em teoria: boa parte deles não são pagos e, ano após ano, os débitos crescem – a ponto de o volume tornar-se tão elevado que impede o desembolso. O recebimento dos precatórios é tornado impossível pelo próprio devedor, que se omite e lesa a todos os credores.
Assim, os precatórios são mais uma peculiaridade brasileira: feitos para permitir o pagamento ordenado dos débitos públicos, transformaram-se num modo de concretizar o inadimplemento. Esse desvio contumaz gerou a tentativa de solução por meio da edição de emendas constitucionais para alterar o art. 100 da Constituição (e o 97 das Disposições Constitucionais Transitórias). A mais recente foi a EC 62/2009, a chamada “Emenda do Calote”.
Esta emenda instalava solução injusta, porém factível. Os precatórios seriam submetidos a regimes diferenciados, com a possibilidade de o devedor parcelar seu débito em 15 anos, ou efetuar depósito mensal de 1% a 2% de sua receita corrente líquida (sem prazo para a quitação). Além disso, foi estabelecido o “leilão reverso” de precatórios (quem oferecesse maior desconto receberia mais rapidamente seu crédito). Sem dúvida, aqui a escolha foi política, realizada que foi pelo poder constituinte derivado. Contudo, em março deste ano o STF julgou inconstitucionais tais dispositivos da EC 62.
Sob a pura ótica jurídica, a decisão do STF é perfeita. Decide o caso por meio da aplicação dos princípios da república, da isonomia e de outros direitos fundamentais. Ocorre que, no mundo dos fatos, ela institucionalizou o caos: a partir de então, não mais se sabe como devem ser pagos os precatórios. Em outubro do corrente ano, o STF começou a tentar resolver o problema, por meio da “modulação” de sua decisão. A sugestão do relator foi a de repartir os modos de pagamento em três: os precatórios já existentes seriam pagos até 2018; os que surgirem até 2018, em cinco anos; e os de depois de 2018, no ano seguinte à respectiva inscrição orçamentária. Proposta essa que só agrava o caos, quando menos por dois motivos: em primeiro lugar, resta saber se ela é factível – o relator consultou a União, os estados e os municípios? Se não, qual seria o motivo para o número de anos? Por que 2018 e não 2017 ou 2019? Por que cinco e não sete? Em segundo lugar, porque instala forte inovação carregada de incerteza jurídica; afinal, pode o STF substituir-se ao legislador constituinte e, assim, definir positivamente como deverá ser aplicado o que não está escrito no art. 100 da Constituição?
Talvez essa proposta de decisão demande discussão um pouco mais profunda: onde a lei atribui ao STF a competência para modular os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, pode-se ler “exercício do poder constituinte”? É válido que o STF se autoatribua o poder de definir como todas as Fazendas Públicas, de todas as pessoas políticas, devam realizar o pagamento dos seus débitos? Ou seria o caso de apenas se obedecer à Constituição?
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