A
idéia de um Estado babá que dá tudo ao cidadão é algo que está tão
impregnado na consciência democrática moderna que será muito difícil
convencer o cidadão comum a andar pelas próprias pernas. Ou pelo próprio
cérebro.
Nas eleições municipais, um estranho cacoete se repete em praticamente sobre todo discurso político-partidário, de norte a sul, de leste a oeste, enfim, contaminando todas as nomenclaturas políticas. Por mais que haja uma aparente oposição entre direita e esquerda, liberais, conservadores ou socialistas, contudo, essa divergência não reflete necessariamente diferenças ideológicas, mas tão somente distinções de interesses ou de grupos políticos personalizados. Assim, as nomenclaturas partidárias tornam-se apenas ficções vazias de algum grupelho ou cacique político. No Brasil, os partidos políticos nunca foram ideologicamente fortes. São expressões inócuas de meros jogos oligárquicos de interesses.
Entretanto, não se pode negar que na fraqueza de identidade partidária das disputas eleitorais, há uma estrutura de pensamento predominante, seja nos projetos, seja nos discursos políticos. É curioso, senão surpreendente, perceber que os esquemas mentais socialistas são hegemônicos em quase todas as propostas de governo expostas na programação eleitoral. Todavia, esse socialismo não se expressa numa estrutura ideológica coerente, e sim numa cultura: discursos e prática políticas que se manifestam inconscientemente, e transforma-se num vício retórico e em uma mania burocrática, que se casaram perfeitamente com o tradicional patrimonialismo da nossa sociedade.
De uma coisa não se pode negar: as ideologias revolucionárias e estatólatras reproduzidas em universidades e escolas do país criaram um consenso assustador, um imperativo categórico inquestionável e dogmático. O Estado adquire auras sacrais e culto idolátrico,é visto como onipotente. Se antes a crença era restrita a uma diminuta elite universitária ou a um círculo de fanáticos positivistas ou marxistas, agora a doutrina do governo total expande sua influência sobre todo o corpo social. Quem negará que os políticos brasileiros, criaturas demagógicas e boçais, formadas muitas vezes, embora indiretamente, por estes mesmos cânones academicistas, não gostaram da ideia?
Nas agendas dos candidatos a prefeito ou a vereadores, observamos discursos messiânicos: idéia de que são seres superiores, milagreiros, grandes pais estatais, prometendo os serviços mais detalhados e minuciosos para atender aos anseios ou carências materiais e emocionais do cidadão comum. Um deles promete mais creches para cuidar das crianças; outros, melhores colégios ou hospitais; ou então empréstimos subsidiados de bancos “populares”, cestas básicas e geração de emprego e renda. Ou mais, centros de lazer ou ocupação para os jovens. Em suma, um processo de burocratização da sociedade muito similar ao sistema sueco de “bem estar social” ou ao regime soviético.
O problema deste discurso é o seu irrealismo, sua inoperância, sua megalomania. Ou mais, sua sedutora ameaça à liberdade civil e política em nome de samaritanos propósitos. Se os políticos repetem essas fórmulas à exaustão é porque os eleitores, bestificados por um universo de doutrinação ideológica e confiança cega no Estado, são capazes de abandonar seus papeis sociais e direitos individuais mais elementares diante dos caprichos de uma burocracia administrativa e política salvadora. Quando os políticos se propõem a criar mais creches ou expandir o sistema educacional, o cidadão médio nutre-se de um conforto espiritual apavorante, uma vez que abdica do papel de pai ou mãe de família, para dar ao Estado um poder que até então era individual. Na verdade, a idéia de um Estado babá que dá tudo ao cidadão é algo que está tão impregnado na consciência democrática moderna que será muito difícil convencer o cidadão comum a andar pelas próprias pernas. Ou pelo próprio cérebro.
O mesmo se aplica em relação à saúde pública. Alguém pensará numa assistência médica onde o Estado não detenha o controle? Por mais que haja pessoas morrendo em filas dos hospitais municipais e por mais que o atendimento seja precário, vergonhoso, ridículo até, o cidadão médio tem a ilusão de que deve ser paparicado como uma criança birrenta e egoísta. Ele não sabe cuidar de sua saúde. O Estado cuida.
Ainda me lembro da cena grotesca do Pronto Socorro Municipal de Belém, quando os médicos e enfermeiros grevistas colocaram um caixão simbólico na frente do hospital. Confesso que aquela cena tinha um ar macabro. Alguém poderia dar credibilidade a um hospital onde o símbolo maior é uma urna funerária? Melhor seria morrer em casa do que ver aquela imagem surrealista. É provável que muitos brasileiros realmente morram em casa e ainda paguem por este serviço falido. Mas isto não consta nas estatísticas do governo.
Alguém poderia objetar afirmando que os pobres precisam de atendimento médico e as crianças sem posses precisam de educação. O problema é que ninguém pergunta como e o que o Estado pode oferecer neste sentido. Não se pode negar que muitos pobres não têm condições de pagar um serviço caro de saúde. Ou que muitos pais tampouco possuem recursos para oferecer uma instrução necessária a seus filhos. Contudo, será que alguém já se perguntou qual o preço da tamanha concentração de poder que o Estado exige para oferecer estes serviços? Quando os tolos falam da redenção da educação universal como uma panacéia pronta para os problemas da sociedade, será que perguntam que tipo de educação se oferecerá às crianças? Ou que tipo de tratamento médico será dado aos doentes?
Não seria mais lógico que a sociedade, de forma voluntária, fizesse sua parte realizando tudo o que espera do governo, ao invés de esperar dessa classe política corrupta e ávida por dinheiro? Alguém acredita que o Estado criará tantas creches ou tantas escolas ou tantos hospitais para atender todo mundo? Mas a que custo? A custo de pilhar e estatizar toda a sociedade?
Há aí uma viciosa falta de iniciativa da própria população em resolver seus problemas. Acostumada a esperar tudo do governo, só resta se sujeitar bovinamente a uma autoridade superior, que realiza, de cima para baixo, o que poderia ser feito de baixo para cima, ou seja, pelos próprios cidadãos.
Os pobres poderiam ser auxiliados sem a interferência direta do governo? A resposta é sim. Durante séculos foi assim. As famílias, através de associações, de Igrejas, se atendiam mutuamente sem a interferência governamental. A anomalia do Estado atual é que gerou a falsa idéia de que é titular absoluto uma educação formal, retirando de outros elementos ou instituições da sociedade, o poder de educar.
Ainda me lembro de uma situação particular. Comentava a uma senhora a seguinte questão: os cidadãos, ao invés de esperarem do governo para asfaltar sua rua, poderiam tomar a iniciativa por conta própria e, no máximo, descontar tais ações dos impostos. E eis que ouvi a seguinte resposta: “deixe o governo fazer”. Isso demonstra que a expansão governamental na democracia estimula uma sociedade de cidadãos atomizados, desarticulados, cuja inércia é retrato de uma carência completa de vínculos institucionais solidários. Na verdade, o vínculo institucional, personificado tão somente no Estado, acaba por alienar os cidadãos de seus próprios interesses e de seus direitos. Porque no final das contas, é o Estado, a classe política, a burocracia que decidem, à revelia da sociedade, o que acham que é melhor para a sociedade.
Não pretendo aqui cair num ingênuo anarquismo. Seria difícil tirar o Estado de cena, sabendo-se que ele gerou um círculo de dependência material e psíquica na comunidade e esvaziou de espaço as demais instituições políticas tradicionais, como a Igreja, a associação civil leiga e a própria família. Contudo, é necessário repensar no poder abominável deste grande monstro filantrópico. O governo deve ser subsidiário, auxiliar da sociedade nos seus papéis tradicionais, não usurpar-los em causa própria. Ou melhor, a solução primaz é fortalecer o que elemento necessário da sociedade, como a Igreja, a família e a associação voluntária, e diminuir a esfera do Estado dentro da lógica limitadora de sua ação política. Quanto menor a influência do Estado, maior a facilidade de controlá-lo e fiscalizá-lo.
Lamentavelmente, a diminuição do poder estatal parece ser uma ilusão, uma luz apagada no discurso político atual. Qual político ou burocrata da atualidade, em sã consciência, quer perder esse poder? Qual político quer perder votos ou mesmo uma eleição, ao falar a verdade para o povo, a de que não há lanche gratuito? E como defender valores tão caros à sociedade, como a liberdade, quando esta sociedade, em sua maioria, está mais apegada a bens e confortos materiais do que tomar conta de si mesma? A própria classe intelectual e universitária, tal como uma casta sacerdotal deste viés político, com algumas exceções, deseja a consagração deste Estado divinizado. A democracia está vivendo uma curiosa situação de escravidão voluntária, onde os cidadãos consentem na servidão de um déspota opressivo, embora pretensamente generoso. São as ovelhinhas obedientes de um mau pastor.
Nos anos 30 do século XX, em meio ao totalitarismo fascista e comunista, alguém afirmava, descrevendo o espírito de uma época, que “todos agora somos socialistas”. Alguém poderá hoje dizer algo diferente, no âmago de nossas pretensas democracias liberais?
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