A teoria política da corrupção
Há duas leituras contrastantes, mas ambas coerentes, sobre o 'mensalão do PT'
Nos idos de 2005, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos formulou o discurso adotado pelo PT face ao escândalo do mensalão. O noticiário, ensinou, constituiria uma tentativa de “golpe das elites” contra o “governo popular” de Lula. Ano passado, o autor da tese assumiu a presidência da Casa de Rui Barbosa, cargo de confiança subordinado ao Ministério da Cultura. É nessa condição que, em entrevista ao jornal “Valor” (21/9), ele reativa sua linha de montagem de discursos “científicos” adaptados às conveniências do lulismo. Dessa vez, para crismar o julgamento do mensalão como “julgamento de exceção” conduzido por uma corte “pré-democrática”. ...
A entrevista diz alguma coisa sobre o jornalismo do “Valor”. As
perguntas não são indagações, no sentido preciso do termo, mas
introduções propícias à exposição da tese do entrevistado — como se (oh,
não, impossível!) jornalista e intelectual engajado preparassem o texto
a quatro mãos. Mas a peça diz uma coisa mais importante sobre o tema do
compromisso entre os intelectuais e o poder: o discurso científico
sucumbe no pântano da fraude quando é rebaixado ao estatuto de
ferramenta política de ocasião. Os ministros do STF narraram uma
história de apropriação criminosa de recursos públicos e de fabricação
de empréstimos fraudulentos pela direção do PT, que se utilizou para
tanto das prerrogativas de quem detém o poder de Estado. Wanderley
Guilherme, contudo, transita em universo paralelo, circundando o tema da
origem do dinheiro e repetindo a versão desmoralizada da defesa. “O que
os ministros expuseram até agora é a intimidade do caixa 2 de campanhas
eleitorais (...). Isso eles se recusam a discutir, como se o que eles
estão julgando não fosse algo comum (...), como se fosse algum projeto
maligno.”
Wanderley Guilherme não parece incomodado com a condenação dos
operadores financeiros do esquema, mas interpreta os veredictos dos
ministros contra os operadores políticos (ou seja: os dirigentes do PT)
como frutos de um “desprezo aristocrático” à “política profissional”. O
dinheiro desviado serviu para construir uma coalizão governista
destituída de um mínimo de consenso político, explicou a maioria do STF.
O cientista político, porém, atribui o diagnóstico a uma natureza
“pré-democrática” de juízes incapazes de compreender tanto os defeitos
da legislação eleitoral brasileira quanto o funcionamento dos “sistemas
de representação proporcional”, que “são governados por coalizões das
mais variadas”.
O núcleo do argumento serviria para a defesa de todo e qualquer
“mensalão”. Os acusados tucanos do “mensalão mineiro” e os acusados do
DEM do “mensalão de Brasília” estão tão amparados quanto os petistas por
uma concepção da “política profissional” que invoca a democracia para
justificar a fraude do sistema de representação popular e qualifica como
aristocráticos os esforços para separar a esfera pública da esfera
privada. A teoria política da corrupção formulada pelo intelectual deve
ser lida como um manifesto em defesa de privilégios de impunidade
judicial do conjunto da elite política brasileira.
Mas, obviamente, o argumento perde a força persuasiva se for lido como
aquilo que, de fato, é. Para ocultar seu sentido, conferindo à obra uma
coloração “progressista”, Wanderley Guilherme acrescenta-lhe uma camada
de tinta fresca. A insurreição “aristocrática” do STF contra a “política
democrática” derivaria da rejeição a uma novidade histórica: a irrupção
da “política popular de mobilização”, representada pelo PT. A corte
suprema estaria “reagindo à democracia em ação” por meio de um
“julgamento de exceção”, um evento singular que “jamais vai acontecer de
novo”.
É nesse ponto do raciocínio que a teoria política da corrupção se
transforma na corrupção da teoria política. Uma regra inviolável do
discurso científico, explicou Karl Popper, é a exigência de consistência
interna. Um discurso só tem estatuto científico se está aberto a
argumentos racionais contrários.
Quando apela à profecia de que os tribunais não julgarão outros casos
com base na jurisprudência estabelecida nos veredictos do mensalão,
Wanderley Guilherme embrenha-se pela vereda da fraude científica. A sua
hipótese sobre o futuro — que, logicamente, não pode ser confirmada ou
falseada — impede a aplicação do teste de Popper.
Há duas leituras contrastantes, ambas coerentes, sobre o “mensalão do
PT”. A primeira acusa o partido de agir “como os outros”, entregando-se
às práticas convencionais da tradição patrimonial brasileira e
levando-as a consequências extremas. O diagnóstico, uma “crítica pela
esquerda”, interpreta o extenso arco de alianças organizado pelo lulismo
como fonte de corrupção e atestado da falência da natureza
transformadora do PT. A segunda acusa o partido de operar, sob o impulso
de um projeto de poder autoritário, com a finalidade de quebrar os
contrapesos parlamentares ao Executivo e perpetuar-se no governo. A
“crítica pela direita” distingue o “mensalão do PT” de outros casos de
corrupção política, enfatizando o caráter centralizado e as metas de
longo prazo do conjunto da operação.
A leitura corrompida de Wanderley Guilherme forma uma curiosa
alternativa às duas interpretações. Seu núcleo é uma celebração da
corrupção inerente à política patrimonial tradicional, que seria a
“política profissional” nos “sistemas de representação proporcional”.
Seu verniz aparente, por outro lado, é um elogio exclusivo da corrupção
petista, que expressaria a “irrupção da política de mobilização popular”
e a “democracia em ação”. Na fronteira onde o pensamento acadêmico se
conecta com a empulhação militante, o paradoxo pode até ser batizado
como dialética. Contudo, mais apropriado é reconhecê-lo como um reflexo
especular da fotografia na qual Paulo Maluf e Lula da Silva reelaboram
os significados dos termos “direita” e “esquerda”.
*Demétrio Magnoli é sociólogo
Fonte: O Globo
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